A maior guerra do mundo

Por Adriana Carranca*

Encontramos o homem em sua casa no alto de uma colina, de onde observava seu império de ocas de palha, lama e soldados miseráveis

O velho bloquinho que consulto para escrever estas palavras ainda preserva, como uma pintura em alto-relevo, vestígios da terra vermelha de Kivu do Norte, no leste da República Democrática do Congo (RDC), fronteira com Ruanda. Trechos da viagem voltam à memória em flashes que me causam arrepios. Entre as páginas borradas, leio: “6 milhões de mortos em duas décadas”; “maior e mais sangrento conflito desde a Segunda Guerra”; “genocídio?”; “por que ninguém está falando sobre isso?”; “holocausto negro?”. Rabisco a última palavra e a substituo, excluindo o ponto de interrogação: “holocausto africano”. As anotações formam o retrato do que é ainda hoje a maior guerra do mundo.

“Mas pouco se ouve falar sobre ela, porque ocorre na floresta densa de um continente esquecido, a África; não mata brancos, não ameaça o Ocidente” — escrevi na abertura de uma série de reportagens publicadas no jornal O Estado de S. Paulo em outubro de 2013.

A lama seca, que dificulta a leitura dos rabiscos em caneta Bic azul, resulta de algo como seis ou sete horas na garupa de uma moto, acompanhando uma equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em campo após um alerta sobre o ataque de rebeldes contra um pequeno vilarejo chamado Lwibo. Em outras sete motocicletas, por uma trilha aberta entre a mata e a montanha, viajavam dois médicos, um congolês e um dinamarquês, enfermeiros também congoleses, uma parteira e uma especialista em logística francesas. Levavam vacinas, coquetéis anti-Aids e outros remédios, além de kits de primeiros socorros para o atendimento de emergência.

O sistema oficial de saúde congolês tem uma cama de hospital para cada mil pacientes e um médico para cada 10 mil, um dos piores índices do mundo. A falta de acesso a instalações de saúde soma-se a outros problemas agudos, como a precariedade das condições de vida locais e a violência contínua. Muitos pacientes dependem dos motociclistas para chegar ao hospital mais próximo para tratamento, ao pronto-socorro após ataques de rebeldes, ou, nos casos de gravidez de risco, até para dar à luz. Não há outra forma de vencer as distâncias e os obstáculos. “Você sempre encontra um caminho possível”, disse Gentil, que me levava.

Era o início da época das chuvas e as rodas patinavam no lamaçal, às vezes afundando até a altura dos joelhos, outras tombando e nos jogando na lama — raras vezes, é verdade, já que os sete motoqueiros congoleses que transportavam as equipes móveis de MSF todos os dias até os vilarejos mais remotos de Kivu do Norte tinham tanta experiência em percursos radicais que alguns deles, como Gentil, participavam do Rali Paris-Dakar.

A hell of a trip! (Ou uma viagem ao coração das trevas, como escreveu Vargas Llosa[1])

Para chegar ao epicentro dos conflitos, no leste do Congo, viajava-se de Kinshasa em um dos pequenos aviões de transporte de suprimentos operados por companhias contratadas pelo sistema de assistência humanitária

Para chegar ao epicentro dos conflitos, no leste da República Democrática do Congo, viajava-se da capital, Kinshasa, em um dos pequenos aviões de transporte de suprimentos operados por companhias contratadas pelo sistema de assistência humanitária. Em Goma, funcionavam os centros de operações dessas organizações e das forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU). Meses antes de minha viagem, rebeldes do M23 — milícia armada dissidente do Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP), que havia sido integrado ao governo congolês em um frágil acordo em 2009 — tinham tomado o aeroporto onde desembarcamos e parte da cidade, iniciando um levante que duraria até o fim do ano, em um novo impulso à violência.

Os capacetes azuis, comandados pela primeira vez por um general brasileiro, haviam conseguido empurrá-los para próximo das montanhas, mas os confrontos continuavam a poucos quilômetros do centro. Na sala de comando das operações das forças de paz da ONU, um mapa colorido que mais parecia um quebra-cabeça mostrava um país retalhado por 84 milícias armadas, que sobrevivem das riquezas minerais do leste, principalmente da exploração de diamantes e coltan (usado em equipamentos eletrônicos) para os países ricos. Para o norte e para o sul de Goma, cada palmo de terra é controlado por um grupo rebelde. Nos 80 quilômetros — percorridos em um 4×4 em mais de quatro horas por causa das más condições da estrada — até o hospital geral operado com a ajuda de MSF em Masisi, e dali por mais alguns quilômetros até Nyabuondo, onde funcionava uma clínica, cancelas marcavam a saída do território sob domínio de um grupo armado e, pouco adiante, a entrada de outro. Minas despontavam no meio da mata, “pequenas Serras Peladas negras”, como escrevi em minha reportagem. O percurso inclui a travessia de um rio na altura do vilarejo de Bihanbwe, controlado por rebeldes da Aliança de Patriotas por um Congo Livre e Soberano (APCLS), um dos maiores e mais violentos grupos mai-mai (milícia local étnica) em atividade no país. À espreita nas margens, eles não escondiam as armas.

O hospital de Masisi era um retrato da guerra no Congo. Em macas separadas apenas por uma cortina, recuperavam-se de ferimentos a tiros um soldado do exército e um miliciano do grupo opositor Nyatura, atingidos na mesma batalha.

A mochila, o bloquinho e a blusa da repórter na chegada à casa de MSF em Masisi (Foto: Adriana Carranca)

Na chegada a Masisi, recebemos um briefing de segurança da francesa Agnes Lam, responsável pela parte de logística. Sua função era uma das mais importantes para garantir o acesso à saúde de milhares de congoleses — saber por onde e como se movimentar na RDC não é para principiantes. Tanto o escritório quanto o alojamento da organização tinham bunkers para onde fomos orientados a nos dirigir em caso de um ataque. Era proibido circular ou trabalhar dentro das instalações sem um rádio conectado com a base, pois o celular não funcionava. A organização estava ligada a um sistema de alerta que avisava sobre confrontos assim que eclodiam e atualizava todo o tempo um mapa com estatísticas de sequestros e outros riscos para a movimentação das equipes médicas, por área. Naquele ano, incidentes causaram a suspensão das operações em Mwesopor duas vezes e em Pinga.

O hospital de Masisi era um retrato da guerra no Congo. Em macas separadas apenas por uma cortina, recuperavam-se de ferimentos a tiros um soldado do Exército congolês e um miliciano do grupo opositor Nyatura, ambos atingidos na mesma batalha. Uma placa sinalizava que era proibido entrar nas dependências do hospital com qualquer tipo de arma. Os pacientes eram informados de que, de acordo com leis internacionais, aquele é um território neutro, e as disputas não deviam ser levadas para dentro das instalações de saúde, sob pena de expulsão. Diante da única chance de sobreviver, as regras eram frequentemente atendidas.

Em outra maca, a socorrista Geneviève Dereeper reanimava um menino já sem forças para mexer os braços, vítima da desnutrição (três meses depois, ela me mandou uma foto dele, já forte e sorridente, fazendo dribles com uma bola que ganhara de presente no dia em que deixara o hospital). Um bebê prematuro sem chances de sobreviver dava os últimos respiros sob o olhar resignado da mãe. Outros morreriam nos próximos dias na pequena maternidade que observávamos por um vão na porta, porque não havia respirador para todos. “Trabalhamos com o que temos. Muitos deles poderiam ser salvos, mas não há recursos suficientes. O mundo não olha para a África”, disse Geneviève.

Em outra sala, uma menina de 14 anos dava à luz o filho gerado de um estupro — uma arma de guerra no Congo. Uma ala reservada mantinha isolados os pacientes de cólera, após mais um surto. Em outra, estavam os infectados por malária, uma ameaça permanente. O sarampo havia reaparecido com força: 1,2 milhão de congoleses tiveram de ser vacinados naquele ano para conter a epidemia. Havia ainda pacientes com tuberculose, agravada pela Aids, e muitos desnutridos. Uma casa, separada do hospital, servia de abrigo para gestantes de risco, que moravam no local nos últimos três meses de gravidez. Elas passavam o tempo reunidas e entoando canções tradicionais para espantar as histórias de horror que traziam consigo.

Os oito funcionários estrangeiros de MSF em Masisi moravam em uma casa simples, próxima do hospital. Não havia energia elétrica, assim como no restante do vilarejo. Um gerador era acionado entre 18h e 23h para permitir o carregamento dos rádios e o uso de computadores. Uma cozinheira congolesa preparava o café da manhã e o jantar para todos, trazendo alimentos frescos, pois não havia geladeira. A mesa de jantar e alguns sofás ficavam no terraço, por causa do calor. Dois sanitários eram compartilhados por todos da casa. Os chuveiros ficavam do lado de fora, em boxes improvisados de madeira, que deixavam os pés e a cabeça à mostra. Para tomar banho, coletava-se água de um cano no quintal, em baldes. Os quartos ficavam nos fundos. Tinham uma cama protegida por mosquiteiro e uma mesinha simples. Um ou dois eram reservados para visitantes esporádicos, como médicos cirurgiões ou especialistas em áreas mais específicas, chamados emergencialmente quando havia necessidade.

Um dos aspectos que me chamaram a atenção no sistema de MSF é que os profissionais estrangeiros, embora não lhes falte nada de essencial, vivem em condições parecidas com as dos locais, o que facilita a integração e acaba por atrair profissionais motivados pelo trabalho, e não em busca de altos salários. Os salários também são, frequentemente, menores do que aqueles que os profissionais de saúde poderiam receber em seus países de origem.

De Masisi, seguimos para Nyabondo, ainda em um 4×4. Um deslizamento de terra impediu a passagem do carro e tivemos de atravessar a pé o lodaçal. Uma ambulância de MSF resgatou-nos do outro lado do barranco, e continuamos a viagem. Quanto mais avançávamos para o norte, mais rebeldes havia na estrada. Entre eles, crianças. Meninos-soldados com rostos de velhos, amadurecidos precocemente pela guerra, em corpos tão franzinos que davam a impressão de não suportar o peso de seus fuzis Kalashnikov. Eles desciam as montanhas no fim de tarde para cobrar “taxas de passagem” dos trabalhadores que retornavam da lavoura, algo como 10% da colheita, geralmente em espécie.

Na altura de Katali, um grupo cercou o carro. Após breve explicação sobre o motivo do deslocamento da equipe, abriu passagem. O motorista informava a base sobre nossa localização de tempo em tempo — se algo nos ocorresse, a equipe de segurança saberia onde fomos vistos pela última vez e poderia identificar o grupo no controle daquela área.

Foi pelo rádio que recebemos o alerta sobre um ataque de rebeldes a um pequeno vilarejo chamado Lwibo. Não era possível seguir de carro até lá, mesmo em um 4×4, e Agnes começou a organizar os motociclistas para levar a equipe que atenderia ao chamado. A viagem para os fundões da RDC é um capítulo à parte, que não caberia aqui descrever. Nos trechos mais afetados pelas chuvas, tivemos de seguir a pé carregando os suprimentos, enquanto os condutores atravessavam as motos nos braços. É apenas um exemplo das enormes dificuldades de levar assistência médica a países como a RDC. O socorro à população do vilarejo abriu a série de reportagens que publiquei no Estadão.

Na volta, a chuva caía com mais força, e os motociclistas decidiram seguir por uma trilha alternativa, de cascalho, pelo alto das montanhas — mais longa, mas onde as motos tinham menos risco de atolar. Foram outras quatro horas de viagem. Um 4×4 foi buscar a equipe no ponto onde já era possível o acesso de carro. Dali, seguiríamos diretamente para Masisi, mas, alguns quilômetros adiante, um veículo atolado no caminho estreito impediu nossa passagem. Anoitecia em Bonde, uma área particularmente insegura. O trecho até Masisi não estava sob o controle de rebeldes, mas do governo, e criminosos comuns costumavam atuar à noite, sequestrando passageiros para depois exigir resgate. As equipes de logística e segurança decidiram que deveríamos voltar para Nyabondo.

De Masisi para Nyabuondo, um deslizamento impediu a passagem do carro e foi preciso atravessar a pé o lodaçal (Foto: Adriana Carranca)

Seria preciso pedir autorização do comandante local para que a equipe passasse a noite no vilarejo. Encontramos o homem, identificado como Dunga, em sua casa no alto de uma colina, de onde observava seu império de ocas de palha, lama e soldados miseráveis. Alto, forte, de barba e vestindo casaco de pele, embora não fizesse frio, ele estava cercado por milicianos armados, seus seguranças particulares, alguns ainda meninos. Sob seu comando estavam quatro brigadas, o que faz dele um dos mais poderosos dentro do APCLS. Na RDC, MSF tinha na época uma equipe que se dedicava ao contato com os vários líderes rebeldes para garantir o acesso e a segurança das equipes médicas em campo. Tratava-se de um balanço delicado, pois a presença de equipes médicas e investimentos em saúde em uma área comandada por um grupo poderiam ser compreendidos como privilégio por outro. Um médico que perde um paciente, um rebelde, pode ser acusado de deixá-lo morrer e de agir em benefício de um grupo opositor. Por isso, a relação das organizações com esses grupos tem de ser o mais transparente possível.

As organizações humanitárias são alvo frequente de críticas por sua relação com grupos armados, muitas vezes criminosos de guerra. Mas qual seria a alternativa? Deixá-los todos morrer, inclusive os civis, que são as maiores vítimas dos conflitos?

As leis internacionais garantem o acesso de organizações humanitárias a regiões de conflito e a proteção de civis e combatentes feridos. As armas das organizações para conseguir levar ajuda a quem necessita são a neutralidade diante das forças em luta e a imparcialidade na prestação de ajuda, sem discriminação de etnia, gênero ou posição política.

***

Ao deixarmos o vilarejo, um homem interceptou o carro e avisou que uma grávida estava em trabalho de parto, mas o bebê não nascia. Com a ajuda de moradores, ela foi carregada para o carro. A estrada estava agora apinhada de rebeldes. Caminhões eram abastecidos sob proteção do bando armado com o minério extraído durante o dia. Dali, seguiriam, ao amanhecer, para as pequenas pistas de pouso e decolagem clandestinas que vimos no caminho. “Um bando armado estava a 500 metros da base da Missão da ONU em Nyabuondo. Dois jovens se aproximam do carro da MSF, que transportava uma grávida em trabalho de parto. Só se vê o brilho do cano de seus fuzis e o branco dos olhos. Eles querem revistar o carro. ‘MSF!’, avisa o motorista. A organização, neutra, não permite que homens armados entrem nos carros e trafega sem seguranças. ‘Sigara! Um cigarro!’, eles pedem. E somem na escuridão”  — escrevo na reportagem.

Em algumas das trilhas que levavam a vilarejos da região de Kivu do Norte, no Congo, só era possível se locomover de moto (Foto: Adriana Carranca)

O trecho interrompido pelo deslizamento de terra pela manhã continuava do mesmo jeito, e tivemos de cruzar novamente o barranco a pé e descalços, porque as galochas, afundadas na lama, dificultavam o caminhar. A travessia era iluminada apenas pelo farol da ambulância que nos aguardava do outro lado. A mulher grávida, em um ato de força, preferiu caminhar sozinha a ser carregada. Acostumada a andar em terrenos naquelas condições e à noite, deixou-nos para trás, quase atolados. Seguimos para o centro de saúde, onde o bebê nasceu pouco depois.

Antes de ir para a casa onde passaríamos a noite, Agnes tratou de encontrar um lugar onde esconder o carro para não chamar a atenção de outros grupos rebeldes, que poderiam enxergar a permanência de uma equipe de MSF em área do APCLS com suspeita. Um pastor ofereceu o quintal de sua igreja.

Na casa, que servia como depósito de suprimentos médicos e hospitalares, não havia chuveiro, e o banheiro era um buraco no mato. Um dos congoleses saiu para buscar algo para comermos e voltou com uma senhora do vilarejo que se ofereceu para cozinhar fufu (massa de mandioca servida com caldo de vegetais), uma das receitas mais tradicionais da RDC. Lavamos os pés e as mãos em uma torneira no quintal, comemos e fomos dormir, com a roupa enlameada do corpo. Éramos 14 pessoas, um pequeno exército de maltrapilhos exaustos, mas em bom astral com o trabalho cumprido do dia. Dividimos os poucos colchões espalhados pela casa, dois em cada um, e os mosquiteiros. O cansaço logo se impôs e, com ele, o silêncio.

Agnes, a responsável pela logística, dormia com o rádio ao lado do ouvido, sob a capa de chuva improvisada como travesseiro, quando o médico dinamarquês Kristoffer Vogler nos acordou para avisar: “O carro já está aqui…”. O sol ainda não tinha nascido e as notícias já chegavam pelo rádio em ritmo frenético: informações de segurança, clima, condições das estradas. Às 6h30, estavam todos em pé e a todo vapor. Começava mais um dia na vida de uma equipe de MSF.


Adriana Carranca é jornalista especializada na cobertura de conflitos, crises humanitárias e direitos humanos, com olhar especial sobre a condição das mulheres. É colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo e repórter enviada para coberturas especiais em Síria, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Israel, Gaza, Egito, Sudão do Sul, Uganda, República Democrática do Congo, Irã, Indonésia, Haiti, México, entre outros. Reportagens suas foram publicadas por revistas como a americana Foreign Policy e a edição francesa da Slate, entre outras. É autora do infantil Malala, a menina que queria ir para a escola (Companhia das Letrinhas) e de outros livros-reportagens. Recebeu, entre outros prêmios, o Esso (menção honrosa) com a série de reportagens “Guerras Esquecidas da África”.

[1] A reportagem “Viagem ao coração das trevas”, em que o escritor peruano Mario Vargas Llosa retratou a guerra civil no Congo, foi publicada no jornal espanhol El País em 2009. O título, por sua vez, é inspirado no livro Coração das trevas (1902), do escritor britânico-polonês Joseph Conrad.