Três dias em Dadaab
Por Giovana Sanchez*
Queria saber como aquelas pessoas se organizavam para solucionar seus problemas depois de dias fugindo da guerra e da seca
O e-mail parecia mais um entre as centenas de releases que os jornalistas recebem todo dia, mas o título me chamou atenção: “Maior acampamento do mundo está superlotado”. A mensagem de Médicos Sem Fronteiras (MSF) falava sobre os 20 anos do maior campo de refugiados do mundo, e sobre como Dadaab, no Quênia, enfrentava graves problemas causados pela superlotação.
Construído em 1991 para abrigar 90 mil fugitivos da guerra civil na vizinha Somália, o acampamento tinha, em 2011, quase 400 mil moradores. Sem perspectivas de paz no país de origem e com poucas esperanças de reassentamento em outro lugar, os moradores de Dadaab viviam — e ainda vivem — como prisioneiros.
Eu nunca tinha ouvido falar em Dadaab, nem sabia muito sobre a guerra na Somália. Mas me parecia impressionante que um local construído para abrigar temporariamente uma população tivesse virado habitação permanente para toda uma nova geração. Eu queria saber tudo sobre a guerra, a construção e a organização de Dadaab. Parecia-me uma pauta incrível, e a melhor forma de realizá-la seria, claro, vendo tudo de perto e olhando nos olhos das pessoas.
Escrevi para a assessoria de MSF pedindo mais informações sobre Dadaab e perguntando sobre a possibilidade de ter ajuda deles no caso de uma viagem. Ao mesmo tempo, enviei uma proposta de pauta aos editores e chefes do G1. Na sugestão, expliquei sobre o campo, coloquei um breve histórico e links de veículos que já haviam publicado sobre Dadaab — eram poucos. Os chefes gostaram de imediato e pediram um orçamento de viagem.
A grande preocupação que norteou toda a decisão sobre ir era minha segurança. Desde o momento em que se cogitou viajar, sabíamos que deveria ser da forma mais segura possível. Nesse meio-tempo — estamos falando de um período de duas semanas, em maio de 2011 —, MSF respondeu confirmando que poderia me receber. Suspirei aliviada, pois sabia que assim estaria segura, além de perto de boas fontes.
A maior dificuldade na preparação da viagem, além de tentar controlar minha ansiedade, foi a compra de um lugar no voo da ONU que fazia o trajeto entre Nairóbi e
o campo. Era a forma mais segura de chegar a Dadaab, e os voos lotavam rápido. Em poucas horas, tivemos de fazer a transferência de US$ 400 para uma conta da ONU, mas a confirmação do pagamento, da qual dependia minha ida, demorou dias para chegar.
Além do voo, tomei vacinas e precisei de uma autorização do governo queniano. Todo o processo demorou um mês — período em que a superlotação do campo se tornou uma crise humanitária, agravada pela pior seca dos últimos 60 anos no Chifre da África.
Quando minha autorização e a confirmação do voo chegaram, Dadaab praticamente se fechou para a entrada de jornalistas: tive muita sorte. Minha pauta, que seria os 20 anos do campo, se tornou os 20 anos do campo em crise humanitária.
Ao chegar ao acampamento, lembrei-me do que Alessandra Vilas Boas, então diretora de Comunicação de MSF no Brasil, me falou: “Não espere um ambiente superamigável. Você conviverá com pessoas que estão trabalhando em uma tragédia, sob forte estresse e em condições difíceis. Tenha compreensão do que isso significa.”
Definitivamente, não é um ambiente fácil. Dava para ver a dificuldade do trabalho e a responsabilidade de se manejar uma crise humanitária. Mesmo assim, recebi toda a ajuda de que precisei, e consegui falar com moradores e transitar por várias regiões do campo. Tive de alugar um carro com motorista e dois seguranças armados — uma condição que foi imposta pela ONU, embora os homens tenham ficado a maioria do tempo dormindo dentro do veículo. Também precisei de um tradutor/produtor que, além de me ajudar muito, tinha uma história de vida maravilhosa e acabou virando um amigo.
Minha ideia não era mostrar a imagem estereotipada daquela África em agonia: crianças magérrimas rodeadas por moscas e morrendo de fome. Eu queria saber como aquelas pessoas se organizavam para solucionar seus problemas depois de dias andando para migrar e fugir da guerra e da seca. Ao focar as soluções, acabei descobrindo coisas impensáveis, como um jornal criado por jovens do campo e um “parlamento” montado para deliberar sobre campanhas de vacinação e torneios de futebol.
Tive apenas três dias de apuração. Claro que mais tempo me permitiria fazer mais coisas e de forma mais aprofundada, mas considero que foi possível mostrar um pouco do que é Dadaab e da crise. O texto principal foi manchete do G1 em 12 de agosto de 2011, e as demais reportagens foram publicadas nos dias seguintes.
Ter ido a Dadaab foi uma das experiências mais fortes da minha vida, e até hoje me lembro daqueles dias e das pessoas que conheci no campo. Sempre digo que a primeira opção para se fazer uma reportagem é ir até o lugar. Claro que (quase sempre) essa não é a realidade do jornalista. Mas é preciso tentar.
Para se ter maior chance de sucesso com a viagem, é preciso ter uma boa história e vender bem a pauta. Explicar por que valerá a pena ir e quais diferenciais você trará. Preparar-se bem, ler e não esquecer a parte técnica (bloquinho, bateria da câmera etc.) também são essenciais. E, quando você estiver lá, aproveite a oportunidade de viver uma experiência única. Sinta e observe tudo. E escreva o melhor texto que puder para, quem sabe, ajudar a mudar realidades.
*Giovana Sanchez é jornalista formada pela UFSC. Foi repórter de internacional do site da Globo (G1) por oito anos, e atualmente faz mestrado na Universidade do Texas