Cobrir o Ebola e desfazer o preconceito

Por Ana Paula Padrão*

Não era raiva que eles despejavam em nós. Era o estigma do preconceito. Aquele vírus que se espalha mesmo entre pessoas bem-informadas

A menção à palavra Ebola, mesmo em uma redação cheia de jornalistas acostumados a tragédias e assuntos dramáticos, provoca arrepios no interlocutor. Não foi diferente quando propus cobrir a evolução do surto do vírus no oeste da África, no final de 2014. “Muito perigoso!”, sentenciou um dos editores.

Meu primeiro desafio seria, portanto, provar que o perigo é tão real quanto administrável. E foi quando procurei a orientação e a ajuda de Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização com a qual mantenho excelentes relações há anos — e não apenas por ser eu uma jornalista interessada nos temas e locais nos quais os profissionais de MSF estão presentes, mas principalmente pela real admiração que nutro pelo trabalho que desenvolvem e pela maneira como o fazem.

Informação é poder em uma região que tenha passado por um desastre natural, esteja em conflito armado ou onde se propague uma doença altamente contagiosa. Se você estuda os desafios que encontrará pela frente, saberá o que fazer, ainda que esteja com medo. Na verdade, o medo até ajuda a conter os voluntariosos. Coragem demais às vezes atrapalha.

Você se prepara para o que pode dar errado, ou sair da área de controle que estabeleceu

Aprendi com MSF que o vírus do Ebola não se pega no ar. Para que um de nós, da equipe de reportagem, se contaminasse, seria preciso contato direto com alguém contaminado e sintomático. E não contato simples. Esbarrar com um doente na rua não significa que você vá pegar a doença. É preciso que um fluido da pessoa infectada (sangue, urina, suor, saliva) penetre na mucosa de alguém saudável. Uma situação muito específica e razoavelmente controlável.

Profissional de MSF observa colega remover o equipamento protetor ao sair da área de alto risco do centro de tratamento de Ebola em Conacri (Samuel Hanryon/MSF)

Decidi ali que não visitaria a casa de um doente confirmado, só acompanharia o transporte de corpos das vítimas com a organização local oficialmente designada para esse trabalho, a Cruz Vermelha, e só entraria no centro de tratamento de Conacri, na Guiné, seguindo rigorosamente as orientações dos responsáveis por esses locais, profissionais de MSF. E foi o que fizemos. E também foi com esses argumentos que recebi todo o apoio da Band TV para seguir com a cobertura. Antes de embarcar, porém — por precaução extrema, mas que não considero exagerada —, separamos os equipamentos de filmagem e fotografia que cada um de nós usaria e que não se misturariam para evitar entre nós, da equipe, qualquer risco de contaminação. Apenas eu usaria meu microfone e apenas eu o manipularia. E assim foi com cada um de nós, em uma equipe de três pessoas: além de mim, o repórter cinematográfico Victor Isasmendi e a produtora e editora Guta Nascimento.

Médicos nos contaram que aproveitavam a proteção da roupa especial para se abraçar, tamanha a falta que sentiam do conforto de carinho físico

Falando assim, parece simples, não é? Você toma todos os cuidados, se informa, lê bastante, conversa diversas vezes com pessoas que já estiveram nos países afetados e nada pode dar errado. Mas é justamente para isso que você se prepara. Para o que pode dar errado. Ou sair da área de controle que estabeleceu. No dia de nossa chegada a Conacri, um domingo, o encarregado de negócios da Embaixada do Brasil na capital, que nos indicou tradutor e guia locais confiáveis, nos levou para filmar o grande mercado de peixes: uma feira como qualquer outra de qualquer outro país africano pobre. Sabíamos como nos comportar. Mas não imaginávamos como eles, os locais, reagiriam à chegada de uma equipe de filmagem, obviamente estrangeira, que certamente estava ali por causa do vírus, e não dos peixes à venda.

Fomos hostilizados. Não era raiva que eles despejavam em nós. Era o estigma do preconceito. Aquele outro vírus que se espalha mesmo entre pessoas bem-informadas e cultas. E que propaga reportagens tendenciosas, repletas de meias verdades ou carregadas de um sensacionalismo que não ajuda a conter o Ebola e só propaga mais receio e discriminação. Tive medo. Um cidadão cuspiu na direção da Guta, como que para avisá-la de que poderia contaminá-la, se quisesse. Ele obviamente não estava doente. Era uma agressão ao que representávamos. Feirantes tentavam tapar a lente da câmera. Comecei a me preocupar seriamente com o Victor, que tinha pouca visão periférica por causa do olho colado na lente da câmera. E eu não podia tocá-lo. Era parte do protocolo de comportamentos para evitar riscos. Saímos o mais rapidamente possível.

Saber quais são as regras a seguir em uma situação assim não é difícil. Segui-las é tarefa emocionalmente destruidora. Médicos nos contaram que aproveitavam a proteção da roupa especial, que inclui máscaras e dois pares de luvas, usada para entrar nas zonas de alto risco de infecção, para se abraçar, tamanha a falta que sentem do conforto de carinho físico depois de semanas e semanas de contagem de mortos. Considero que trouxemos um material equilibrado e verdadeiro sobre o Ebola. Estou consciente de que muitos brasileiros sabem mais hoje sobre o vírus e sua propagação por causa de nossa preocupação em não exagerar o que não requer um único adjetivo. Sonhei com o que vivemos, no entanto, muitas noites seguidas. Os enterros, a desinfecção dos corpos, o medo, as marcas que ficam na população local. Jornalistas lutam permanentemente contra a desinformação. Ali, a guerra era essencialmente essa. Combater o Ebola é combater o estigma da doença.

*Ana Paula Padrão foi correspondente em Londres e Nova York. Primeira jornalista brasileira autorizada a entrar na Coreia do Norte, já esteve quatro vezes no Afeganistão. Entre suas coberturas internacionais estão a crise do Ebola na Guiné, o acidente nuclear de Tokaimura, no Japão, e a prisão do ditador Augusto Pinochet.