O desafio de cobrir uma história que virou rotina

Por Kareem Shaheen*

A maioria dos refugiados sírios em Beirute é sunita, mas muitos moram em redutos do Hezbollah, xiita, porque é mais barato

O impacto da guerra da Síria no Líbano foi enorme. Quando cheguei a Beirute, em 2013, o principal foco de minha cobertura eram os refugiados sírios que buscaram abrigo no país e as repercussões do conflito, inclusive por causa do apoio do Hezbollah — misto de partido e milícia da comunidade xiita libanesa — ao governo de Bashar Al Assad. Houve na época uma série de atentados suicidas em áreas xiitas de Beirute. As fronteiras ainda estavam abertas, e havia de tempos em tempos grandes influxos de refugiados. Também havia muitos combates perto da fronteira sírio-libanesa, especialmente nas áreas do norte do Líbano.

Havia, no final de 2016, entre 1,1 e 1,6 milhão de refugiados sírios no Líbano. É difícil ter um número preciso, porque muitos sírios viviam aqui antes da guerra, trabalhando na agricultura ou na construção civil, e parte deles pediu refúgio depois do início do conflito. Outros chegaram e foram para a Turquia, tentando alcançar a Europa. Os refugiados se distribuem entre Beirute; Sidon, ao sul da capital; Trípoli, ao norte; e áreas próximas à fronteira norte. Mas estão principalmente no interior, onde vivem em acampamentos informais.

O governo libanês se recusou a criar campos oficiais como os que foram estabelecidos há décadas para os palestinos e continuam existindo. O Líbano tem uma estrutura de poder baseada na religião, com cada grupo sectário detendo um percentual de cadeiras no Parlamento e no gabinete. Por isso, temia que construir estruturas permanentes pudesse alterar a demografia do país. Muitos dos refugiados sírios de origem palestina ou refugiados palestinos que estavam na Síria e fugiram para cá passaram a viver em apartamentos nos velhos campos de refugiados, porque o aluguel é mais barato do que no resto de Beirute.

Visitei a trabalho a maioria dos locais em que os refugiados vivem, e, se você perguntar, a maioria deles quer voltar para seu país. O sentimento contra os refugiados não é dominante, e tende a aparecer apenas depois de incidentes de segurança. Apesar de a maioria dos refugiados ser do ramo sunita do Islã, muitos moram nas áreas do sul de Beirute que são reduto do Hezbollah, porque também é mais barato do que no resto da cidade.

O frio pode ser bem rigoroso nas montanhas do Líbano, e as tendas não dão aos que fugiram da Síria a proteção necessária.

A maior parte da assistência aos refugiados é prestada por organizações não governamentais, locais ou internacionais, muitas delas atuando como parceiras de agências da ONU. Por exemplo, depois que houve casos de poliomielite na Síria, por causa da interrupção do calendário de imunização, a Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou uma campanha de vacinação dos refugiados, implementada com organizações locais.

Em 2016, havia no Líbano cerca de 300 mil crianças sírias fora da educação formal, e o governo estava tentando incorporar parte delas em seu sistema educacional. Organizações locais organizaram escolas informais, perto dos acampamentos, para parte dessas crianças, mas muitas não frequentam porque precisam trabalhar para ajudar a família a conseguir algum dinheiro. Na saúde, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) financia o atendimento primário até certo ponto, mas os refugiados têm de pagar por cirurgias ou tratamentos de longo prazo. Médicos Sem Fronteiras (MSF) também presta assistência médica e de saúde mental a refugiados sírios no Líbano, e visitei o hospital construído pela organização na Jordânia para feridos de guerra sírios.

Como os acampamentos de refugiados aqui são informais, não é necessária nenhuma autorização para visitas, e em geral os moradores estão dispostos a falar com jornalistas. Mas, antes de fazer uma reportagem, costumo entrar em contato com as organizações que assistem os refugiados, já que elas conhecem os problemas e os casos. Se você quiser entrar em contato com refugiados que fugiram da cidade de Raqqa, que é controlada pelo Estado Islâmico, por exemplo, pessoas que trabalham cotidianamente nos acampamentos sabem quem você pode procurar. Às vezes, elas sugerem boas histórias. O caso de um menino sírio que tinha câncer, conseguiu tratamento e sobreviveu me foi sugerido por um funcionário da ONU que conhecia a família.

O problema está aí há anos e não há nenhuma perspectiva de solução. Para tornar a história atraente, é preciso encontrar ângulos criativos

Mulher grávida na porta de sua tenda em acampamento improvisado no Vale do Bekaa, onde cerca de 400 mil sírios buscaram refúgio (Ghazal Sotoudesh/MSF)

O desafio de cobrir a questão dos refugiados sírios no Líbano é que é um drama que virou rotina. O problema está aí há quatro, cinco anos, e não há nenhuma perspectiva de que será solucionado a curto prazo. Por isso, para tornar uma história atraente é preciso encontrar ângulos criativos. Em novembro de 2013, escrevi uma reportagem sobre como os refugiados estavam lidando com o frio, que pode ser bem rigoroso nas áreas montanhosas do Líbano. As tendas não lhes davam a proteção necessária. Passei uma noite com uma família refugiada em meio a uma tempestade de neve para saber como faziam para aguentar. Também escrevi sobre o trabalho infantil entre refugiados. Fui a uma empresa agrícola no norte do Líbano onde as crianças estavam trabalhando no cultivo e descrevi suas condições de trabalho. Entrevistei crianças trabalhando nas ruas de Beirute — engraxando sapatos, vendendo miudezas ou pedindo esmola. Escrevi uma reportagem sobre mulheres que foram traficadas para o Líbano e obrigadas a trabalhar como escravas sexuais por quatro anos.

Desde que comecei a cobrir a guerra, não consegui ir à Síria. Solicitei visto várias vezes, mas os pedidos foram recusados, e atualmente é arriscado demais ir pela fronteira turca. O desafio de cobrir a guerra remotamente é que você precisa desenvolver fontes que se provem confiáveis, ter um grupo de pessoas que você contata quase todo dia para poder checar com várias delas se uma informação é verdadeira ou não. É essencial ter em mente que todo mundo com quem você fala tem uma posição, uma tendência — sejam suas fontes simpatizantes dos grupos da oposição ou do governo. No início de 2016, queríamos confirmar denúncias de que as pessoas estavam morrendo de fome em Madaya, uma cidade sob cerco do governo. Ninguém podia entrar lá. Uma maneira de verificar informações sobre a falta de alimentos na cidade era, por exemplo, fazer uma pergunta muita específica, sobre o preço do arroz, por exemplo. Se duas pessoas me dissessem exatamente o mesmo preço, já era uma indicação da confiabilidade da informação. No final, quando o governo finalmente deixou entrar um comboio de ajuda, pudemos falar com trabalhadores humanitários que descreveram o que viram.

Tenho uma ligeira vantagem na cobertura, porque minha noiva é de Aleppo e ainda tem parentes lá. Falo com eles frequentemente para saber do que as pessoas estão falando, do preço da comida, do que aconteceu na vizinhança na noite passada. Há muitas organizações trabalhando com parceiros na Síria, e elas frequentemente o ajudam a entrar em contato com pessoas lá. MSF, por exemplo, apoia hospitais na Síria que foram atingidos em ataques ou bombardeados. Por meio de MSF podemos tentar localizar testemunhas desses ataques. Como cubro a Síria todo dia, desenvolvi uma rede de contatos em diferentes regiões do país, incluindo jornalistas locais.

Em termos dos atores do conflito, tendo a priorizar os que têm maior peso e são mais fortes em campo. Há pessoas especializadas em identificar cada nova facção ou dissidência que surge na Síria. Ajuda conhecer esse cenário, saber quem recebe apoio de quem. Mas na cobertura nosso foco não é nos acontecimentos incrementais — por exemplo, se os rebeldes tomaram este ou aquele morro. Ao falar para um público mais geral, damos prioridade às grandes dinâmicas do conflito, que em geral envolvem as facções rebeldes mais poderosas e o governo, bem como seus respectivos apoiadores.

* Kareem Shaheen é desde 2015 repórter do jornal britânico The Guardian, baseado em Beirute, onde vive desde 2013. Antes, trabalhou para o jornal libanês The Daily Star.