O jornal deu sinal verde. Aí é que começou a batalha
Por Patrícia Campos Mello*
Um militar chegou numa camionete e veio até nós: “Vocês precisam sair daqui já, tem muita gente contaminada com Ebola nesses vilarejos”
A cobertura da epidemia de Ebola em Serra Leoa, em agosto de 2014, foi uma das mais difíceis da minha vida. Comecei a conversar com o pessoal de MSF em junho, quando eles estavam abrindo o hospital de tratamento de Ebola em Kailahun, província de difícil acesso em Serra Leoa. Na época, o assunto ainda não havia entrado no radar da grande imprensa. A Organização Mundial da Saúde (OMS) não falava em epidemia — atraso que, aliás, foi muito criticado posteriormente —, e a doença estava restrita à população negra e pobre da tríplice fronteira entre Guiné, Serra Leoa e Libéria. Ou seja, ainda não havia notícias de infecção de ocidentais ou perigo de se alastrar por outros países, e o interesse da mídia era limitado. Mesmo assim, levei a ideia da pauta para a chefia do jornal, que se interessou. Afinal, era muito importante mostrar ao mundo uma epidemia que afetava pessoas em países já muito sofridos e pobres. Em julho, a situação na África Ocidental piorou e ficou claro que a doença estava fora de controle. No fim de julho, o jornal deu sinal verde. Vamos.
Aí é que começou a batalha.
Coincidentemente, na semana em que o jornal me pediu que tocasse a pauta, o repórter fotográfico Avener Prado entrou em contato com MSF, interessado na cobertura. Estava formada a dupla: Avener e eu juntamos esforços. Mas, naquela altura, a situação tinha piorado muito. Os assessores de MSF nos avisaram que não poderiam nos receber na época em que o jornal queria que fôssemos. E tampouco poderiam prestar qualquer tipo de assistência, uma vez que a situação era muito grave e eles obviamente tinham outras prioridades. Resolvemos ir mesmo assim.
Antes de partirmos, integrantes de MSF nos deram um briefing precioso, explicando como enfrentar a pressão psicológica de trabalhar em uma epidemia, além de cuidados gerais com a saúde. As assessoras de comunicação nos ajudaram com contatos para aluguel de carro e hotel, além de fontes de MSF lá.
O editor executivo da Folha, Sergio Dávila, exigiu que passássemos por um infectologista antes de partir. O médico nos deu orientações e nos receitou doxiciclina para fazer a prevenção de malária. Era muito importante evitar a malária, porque os sintomas iniciais são semelhantes aos do Ebola e poderíamos acabar em quarentena em um hospital em Serra Leoa, um risco altíssimo naquela época. Também passamos pelo Ambulatório do Viajante no Hospital das Clínicas, onde médicos e enfermeiras são muito experientes e nos indicaram todas as vacinas necessárias.
Lívia tinha dois pesadelos recorrentes. Em um deles, estava em um vilarejo e uma pessoa com EBOLA vinha correndo e vomitava em seus pés. Em outro, sonhava que uma de suas luvas se rasgava
Além de consultar muitos relatos sobre a epidemia que haviam saído na imprensa mundial, li dois livros muito interessantes sobre doenças emergentes: o antigo The coming plague (A próxima praga), de Laurie Garrett, uma jornalista especializada em saúde global, e Spillover: animal infections and the next human pandemic (Transmissão: infecções animais e a próxima pandemia humana), de David Quammen. Na mala, levamos luvas, álcool gel, desinfetante para sapatos, barras de cereal, água mineral, repelente, casaco impermeável, termômetro. O primeiro sintoma do Ebola é a febre. Medíamos nossa febre pelo menos duas vezes por dia. A qualquer sinal de aumento de temperatura, teríamos de ir para o isolamento de algum hospital em Serra Leoa.
Passamos por Londres para tirar o visto, pois não há embaixada de Serra Leoa no Brasil (hoje está mais fácil tirar o visto online; quando voltei ao país, em maio de 2015, fiz tudo pela internet). A maioria das companhias aéreas havia cancelado os voos para os países afetados pelo Ebola. Pegamos dois dos últimos lugares disponíveis em um voo da Air Brussels, que saía de Londres, passava por Bruxelas e de lá chegava a Freetown, capital de Serra Leoa. No voo, só havia médicos e funcionários de organizações não governamentais (ONGs).
O hotel em Freetown, um Radisson cujo gerente era um simpático português, estava deserto. Os únicos hóspedes éramos nós, os jornalistas do New York Times e de uma TV francesa, e médicos. O desafio seguinte foi conseguir autorização para entrar na zona da epidemia, que estava isolada por diversos checkpoints. Em tese, ninguém poderia entrar ou sair de lá sem o “permit”. E, se estivesse com febre, a pessoa não era autorizada a sair da área afetada.
Levamos dois dias saltando de uma repartição pública para outra tentando arrumar o tal permit. Nosso parceiro indispensável foi Mohammed Bayoh, nosso fixer. Sempre com um sorriso no rosto e uma boa vontade inesgotável, ele nos ajudou a navegar pela burocracia leonesa, foi nosso motorista, tradutor e salvador. Com a autorização em mãos, enchemos nosso carro, uma Nissan Pajero, de garrafas de água e galões de combustível e partimos para o epicentro da epidemia. A primeira parada foi Kenema, onde havia um hospital público que tinha perdido dezenas de médicos e enfermeiros para o Ebola, além de centenas de pacientes. Lá também conversamos com sobreviventes do vírus. Gente como Alhassan Kemokai, que o contraiu da mãe. Ela estava muito fraca, ele lhe deu a mão e a ajudou a levantar. “Eu até desconfiei que fosse Ebola, mas não se pode negar a mão à própria mãe”, contou.
Sua irmã mais nova, o sobrinho de 10 meses, seus irmãos e uma prima ficaram doentes. O sobrinho e a prima morreram. De Kenema, rumamos para Kailahun, onde MSF havia construído o primeiro hospital do país especializado em acolher pacientes infectados com o Ebola. Chovia sem parar havia vários dias, e a estrada de terra ficou intransitável. Nosso carro atolou. Nenhum celular pegava. Estávamos em uma estrada no meio da selva, enterrados na lama, esperando alguém aparecer. Finalmente, passou um caminhão da ONU e começou a nos rebocar, mas também atolou. Vieram mais dois caminhões da ONU e um de MSF. Todos atolaram.
Nessas coberturas, vale a Lei de Murphy, sempre. Então é preciso ter planos A, B, C e D. Um militar chegou em uma camionete e veio até nós. “Vocês precisam sair daqui já, tem muita gente contaminada com Ebola aqui nesses vilarejos”, disse. Olhei para ele e implorei: “Por favor, o senhor pode nos dar uma carona?” O militar, o major Baimba Demby, do exército de Serra Leoa, tinha saído da capital, Freetown, e se dirigia à base dos soldados que estavam em Kailahun ajudando a combater a epidemia. Ele ia pegar um atalho. Meu colega Avener foi na caçamba, com o peixe fresco que estava sendo levado para os soldados. Eu fui no banco do passageiro. Tinham nos orientado a nunca pegar carona ou usar transporte coletivo. E a não encostar em ninguém. A doença passa por fluidos corporais — suor, sangue, vômito — de uma pessoa contaminada e sintomática. Mas não tínhamos opção. Em Kailahun, a situação era dramática. Muita gente tinha perdido o vizinho, o pai ou a mãe para o Ebola. E ninguém se encostava, porque não se sabia quem poderia estar com a doença. É uma epidemia que acaba com famílias.
Os médicos que conheci lá são heróis. A infectologista italiana Livia Tampellini, de 38 anos, largou um ótimo emprego na Itália para se embrenhar na selva de Serra Leoa. O trabalho de Livia era entrar todos os dias na área de alto risco do hospital de Kailahun para cuidar de doentes de Ebola altamente contagiosos. Livia costumava ter dois pesadelos recorrentes. Em um deles, estava em um vilarejo e uma pessoa com Ebola vinha correndo e vomitava em seus pés. Em outro, sonhava que uma de suas luvas se rasgava, ela demorava a perceber e se contaminava com o vírus no hospital. Muita gente disse que eu era louca de ir até lá. Mas sobreviventes como Alhassan e médicos como Livia me fizeram ver que eu estava certa.
Serra Leoa, Libéria e Guiné, onde mais de 27 mil pessoas foram infectadas, precisavam continuar lutando para identificar doentes e isolá-los, evitar que eles continuassem infectando suas famílias, impedir que médicos e enfermeiras, sem a proteção necessária, se infectassem ao tratar os doentes. Para isso, era preciso gente treinada e dinheiro para comprar equipamentos, e muita ajuda de outros países. Se os jornalistas não estivessem lá para noticiar o que estava acontecendo, rapidamente essas pessoas seriam esquecidas.
*Patrícia Campos Mello e repórter especial da Folha de S. Paulo e colunista da Folha.com. Formada pela Universidade de São Paulo, tem mestrado pela Universidade de Nova York. Foi correspondente em Washington de 2006 a 2010 e na Alemanha em 1998