O lado humano das crises humanitárias
Por Teresa Perosa*
A pessoa que está à sua frente passou por traumas e violências absolutamente inimagináveis e, ainda assim, está aberta a recebê-lo
Os temas do refúgio e da migração sempre me despertaram um interesse especial, por entender que o elemento mais fundamental com o qual um ser humano deveria poder contar é uma casa, um local de acolhida. Ser forçado a deixar seu lar, sua cidade, seu país para partir rumo ao desconhecido, seja qual for a razão, representa uma das maiores angústias que alguém poderia viver. Enquanto a geopolítica, os acordos de cessar-fogo, as estratégias de cada ator internacional são exaustivamente analisados e esmiuçados, estar na linha de frente e presenciar as consequências humanas das decisões tomadas a portas fechadas representa não só um desafio, mas uma enorme responsabilidade.
São aquelas histórias que darão cara às estatísticas, números de mortos, feridos, deslocados, refugiados — em geral repetidos ao léu como se fossem trivialidades. Não o são — não deveriam ser. Cada crise ou decisão política terá um impacto que será sentido por quem é mais vulnerável, por quem não tem para onde ir. E o trauma do deslocamento forçado impacta suas vítimas por toda uma vida.
A crise humanitária de refugiados que eclodiu na Europa em meados de 2015 chamou a atenção internacional para uma questão por vezes escanteada em meio a outras coberturas, mas acabou por desviar o foco dos países que mais recebem as vítimas dos conflitos armados — Oriente Médio, Turquia, Líbano e Jordânia. Ali, organizações humanitárias sofrem com a falta crônica de recursos e estruturas para dar conta do crescente fluxo de pessoas.
Além disso, nos últimos anos, em meio à proliferação de conflitos armados, temos visto a preocupante tendência de aumento de ataques a profissionais e estruturas de saúde, protegidos por leis e disposições humanitárias internacionais. No caso específico de Médicos Sem Fronteiras (MSF) e sua atuação no Oriente Médio, vimos hospitais e centros de saúde que ofereciam atendimento essencial às vítimas no Iêmen e na Síria serem covardemente atacados, muitas vezes não por grupos rebeldes ou paramilitares, mas por exércitos regulares, forças estatais das quais se espera que atuem de acordo com as normas e os parâmetros de engajamento.
Nesse contexto, foi ainda mais impactante poder acompanhar de perto, em março de 2016, o trabalho de seus profissionais de saúde na Jordânia, um território no qual há estrutura e relativa estabilidade para oferecer o melhor atendimento possível a quem busca auxílio.
Qualquer jornalista que tem um interesse especial por direitos humanos e questões humanitárias deseja poder ir a campo e ver de perto a linha de frente das crises internacionais. Em tempos de orçamento restrito — o que, na prática, significa menos tempo e menos recursos para coberturas in loco —, ter um planejamento e uma estrutura bem-azeitada em campo faz toda a diferença para a apuração e o resultado final. Poder visitar os centros de saúde tocados por MSF e contar com o auxílio dos profissionais da organização foi uma das garantias que tive de que conseguiria um bom retrato da situação humanitária na região.
Se a crise recente trouxe o tema de volta ao foco, é preciso também entender que, quando falamos de refúgio e migração forçada, falamos de questões perenes. A própria existência de campos de refugiados é frequentemente encarada como uma primeira resposta emergencial — necessária, porém transitória. No entanto, quando pensamos em lugares como Líbano, Palestina, Quênia e outros tantos, o temporário com frequência assustadora se converte em permanente. Quando estive na Cisjordânia pela primeira vez, em 2013, visitei campos como Dheisheh, fundado em 1949 nas proximidades de Belém — por ali, três gerações de refugiados fizeram do arranjo provisório um bairro permanente.
Ainda durante a faculdade, entrevistei um grupo de refugiados que acabara de chegar ao Brasil e tinha sido levado para uma cidade no interior de São Paulo. As famílias eram originalmente palestinas, mas deixaram suas casas nas guerras de 1948 e 1967 e buscaram refúgio no Iraque. Ali se estabeleceram e construíram seus lares e vidas. Mas durante a invasão americana do país, iniciada em 2003, junto a milhares de pessoas essas famílias mais uma vez deixaram tudo o que tinham para trás, agora rumo à Jordânia. Tornaram-se refugiados em dose dupla. Lá passaram anos em um campo no meio do deserto, à espera de um local que lhes oferecesse acolhida. Em nosso encontro, me relataram as condições de vida em Ruwasheid, campo na fronteira com o Iraque, hoje já desativado.
A sensação de déjà-vu foi inevitável quando andei pelas ruas de Za’atari, o campo de sírios no norte da Jordânia, e me lembrei dos refugiados que conheci em Mogi das Cruzes. Seus relatos sobre a falta de estrutura, que iam desde a ausência de escolas e acesso restrito à água até a infestação de escorpiões em suas barracas, ecoaram familiares com os depoimentos da nova leva de refugiados que agora ocupa o deserto jordaniano.
Desde Mogi até agora, acredito que lição mais valiosa que aprendi nesses (poucos) anos de cobertura de temas humanitários é que a melhor história, a que vale mais a pena será a conseguida a partir do respeito e da sensibilidade com a “fonte”, o “personagem” em questão. Creio que deva ser um objetivo primordial tentar a todo custo preservar ao máximo os personagens, as pessoas que tão gentilmente toparam falar conosco, compartilhar suas histórias, mesmo que recontá-las seja reviver traumas e reabrir feridas pouco cicatrizadas. Há de se partir da compreensão de que a pessoa que está à sua frente passou por traumas e violências absolutamente inimagináveis e, ainda assim, está aberta a recebê-lo.
Como repórteres, temos a tendência a racionalizar excessivamente tudo o que vemos. Além de almejar uma cobertura equilibrada e apurar a melhor informação possível, acredito que parte de nosso trabalho deve ser não deixar que o cinismo jornalístico pouco a pouco resvale em falta de sensibilidade, respeito e empatia — principalmente quando tratamos daqueles que viveram o mais absoluto horror, mas seguem vivos, com esperança no presente, sobrevivendo.
* Teresa Perosa é repórter de Mundo da revista Época. Como enviada especial, já escreveu matérias da Jordânia, da Turquia, do Egito, de Israel e dos Territórios Palestinos Ocupados. Formada em jornalismo pela ECA-USP, é pós-graduanda em política e relações internacionais pela FESP-SP.