A doutrina da Responsabilidade ao Proteger (RwP)

Dawisson Belém Lopes e Aziz Tuffi Saliba

Em 2005, por ocasião da Cúpula Mundial da ONU, os chefes de Estado então reunidos em Nova York endossaram o conceito de Responsabilidade de Proteger (R2P), o qual foi consagrado pela Resolução 60/1[1] da Assembleia Geral das Nações Unidas, estruturando-se sobre três pilares. Essa resolução reconhecia a obrigação de todo e de cada Estado nacional de proteger a sua população de graves violações dos direitos humanos e do direito humanitário (primeiro pilar), e enfatizava o dever da comunidade internacional de assistir as sociedades que falhassem na consecução da meta (segundo pilar). Entretanto, o documento também previa que, no caso de os meios pacíficos mostrarem-se inadequados e insuficientes, a mesma comunidade internacional estaria habilitada a tomar as medidas de segurança coletiva cabíveis, mobilizando inclusive a força, para fazer cumprir o seu objetivo (terceiro pilar).

Declarações oficiais do Brasil evidenciam sua postura crítica sobre a Responsabilidade de Proteger. O país preconiza a prevalência do segundo pilar desse conceito, relacionado com a provisão de assistência e o desenvolvimento das capacidades dos Estados pela comunidade internacional. Além disso, reforça o caráter subsidiário e de último recurso do terceiro pilar, consistente no uso de forças militares. O uso da força, com base na R2P, demanda o esgotamento prévio de todos os meios pacíficos para resolver a contenda e a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU).

Mais recentemente, o Brasil tem sublinhado o fato de que a comunidade internacional, enquanto usa a força nos campos da Responsabilidade de Proteger, deve observar limites materiais, temporais e formais. Seus objetivos são assegurar que as operações realizadas baseadas nessa exceção não piorem os conflitos e prejudiquem a população civil. O limite material permitiria o uso de intervenções militares somente em situações extremas, para impedir atrocidades em massa, como genocídios, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. O limite temporal traduz-se na noção de que a força militar seja um “último recurso”, isto é, devendo ocorrer após a evidente falha do Estado no exercício de sua responsabilidade de proteger e após o esgotamento de todos os meios pacíficos. Finalmente, a limitação formal significa que o CSNU deve ser o único órgão credenciado a autorizar operações de R2P.

Para o Brasil, intervenções militares mostraram que a Responsabilidade de Proteger pode ser usada indevidamente e agravar conflitos

Em seu esforço de limitar o âmbito da Responsabilidade de Proteger, o Brasil tem estabelecido a Responsabilidade ao Proteger (responsability while protecting, ou RwP), que deve acompanhar a Responsabilidade de Proteger. A noção de responsabilidade ao proteger apareceu primeiramente em 2011, durante o discurso da presidente Dilma Rousseff na abertura do 66ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas. A presidente mencionou o considerável contingente de vítimas civis nas intervenções militares ocorridas à época e reforçou a importância da diplomacia e do desenvolvimento social e econômico para a prevenção de conflitos. Na conclusão, declarou que a comunidade internacional tem dado muita importância à Responsabilidade de Proteger, mas negligenciado a Responsabilidade ao Proteger.

A concepção da Responsabilidade ao Proteger busca evidenciar as consequências ultrajantes da falha da comunidade internacional em tomar medidas apropriadas — tal como em Ruanda — e destacar os problemas das intervenções humanitárias posteriores. Como a presidente Dilma enfatizou em seu discurso na Assembleia Geral de 2011, “o mundo sofre, hoje, as dolorosas consequências de intervenções que agravaram os conflitos existentes, possibilitando a infiltração do terrorismo onde ele não existia, inaugurando novos ciclos de violência, multiplicando o número de vítimas civis”. Consequentemente, o Brasil sustenta que o cumprimento das normas do direito humanitário internacional, de proteção de direitos humanos e das atinentes ao uso da força (jus ad bellum) é essencial para as ações baseadas na R2P, contribuindo para que tais ações não causem um prejuízo maior do que o que se pretende prevenir.

É possível inferir das declarações oficiais brasileiras que as consequências da intervenção militar na Líbia durante a “Primavera Árabe” levaram o Brasil a desenvolver e enfatizar a doutrina da Responsabilidade ao Proteger. As resoluções 1970 e 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) relacionadas com a intervenção militar na Líbia, em 2011, representaram o momento de virada nas operações militares baseadas na Responsabilidade de Proteger. Pela primeira vez, o CSNU autorizou ação militar para evitar atrocidades em massa em um Estado ainda funcional, independentemente de seu consentimento prévio às operações. Além disso, uma seção da resolução 1973 do CSNU abordou a “proteção de civis” e determinou que Estados-membros deveriam “tomar todas as medidas necessárias, não obstante o § 9o da resolução 1970, para proteger civis e áreas civis sob a ameaça de ataque” na Líbia. Assim, a resolução 1973 do CSNU evidenciou que a Responsabilidade de Proteger e a “proteção de civis” estão interligadas.

Campo de Nduta, na Tanzânia; o campo abriga refugiados do Burundi e da República Democrática do Congo (Foto: Louise Annaud/MSF)

Apesar do comprometimento com a promoção dos direitos humanos e a prevenção de atrocidades em massa, o Brasil, que na ocasião era membro não permanente do CSNU, não apoiou a resolução 1973. Ao lado de outros membros do Brics (Índia e os membros permanentes do CSNU — China e Rússia) e da Alemanha, o país absteve-se na votação dessa resolução, pois temia que a autorização plena de ações militares consagrada no texto pudesse se desviar de seu objetivo inicial de proteger os civis, tornando-se, assim, um instrumento de pretexto para a derrubada do governo de Muammar Gaddafi. Como a então embaixadora do Brasil na ONU, Maria Luiza Ribeiro Viotti, afirmou em uma nota conceitual de novembro de 2011 sobre a Responsabilidade ao Proteger: “[…] há uma crescente percepção de que o conceito de Responsabilidade de Proteger pode ser utilizado de maneira indevida para outros fins que não proteger os civis, tais como a mudança de regimes. Essa percepção pode tornar ainda mais difícil de se atingir os objetivos de proteção pretendidos pela comunidade internacional”.[2]

As resoluções do Conselho de Segurança da ONU relacionadas com a intervenção militar na Líbia, em 2011, representaram o momento de virada nas operações militares baseadas na Responsabilidade de Proteger. Pela primeira vez, o Conselho autorizou ação militar para evitar atrocidades em massa em um Estado ainda funcional

A posição do Brasil é consistente com sua tradicional ênfase no respeito do direito internacional e na crença de que proteger civis, durante a guerra, e a população em geral, quando fora do contexto de guerra, devem ser preocupações da comunidade internacional e consentâneas com o uso da força, a fim de evitar sérias violações de direitos humanos e do direito humanitário internacional. Contudo, levando-se em consideração sua natureza de último recurso, a força não deve ser usada indiscriminadamente, sendo seu uso precedido pelo esgotamento de todas as medidas diplomáticas disponíveis para lidar com a disputa em questão. Após concluir que a força militar deve ser utilizada, todos os passos necessários devem ser tomados com o objetivo de impedir que os conflitos se agravem e que causem mais sofrimento humano do que a intervenção militar visava a evitar, especialmente entre a população civil. Como Antonio Patriota bem alegou, “o uso da força deve produzir o mínimo possível de violência e instabilidade possível e, sob nenhuma circunstância, podem-se gerar mais danos do que se autorizou evitar; […] a ação deve ser criteriosa, proporcional e limitada aos objetivos estabelecidos pelo Conselho de Segurança”.[3]

A ênfase do Brasil na proteção dos civis é evidente nas declarações emitidas por entidades multilaterais das quais o país é membro. Os países do grupo Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), por exemplo, ressaltaram a importância desse assunto na declaração final de sua 6ª cúpula, em 2014, que abordou especificamente a situação do Mali, da Síria e da Palestina (Declaração de Fortaleza, §§ 32, 37 e 38)[4]. O receio sobre a situação da Síria também apareceu na declaração final da 5ª cúpula do Fórum de Diálogo Ibas (Índia, Brasil e África do Sul)[5], em 2011. Enquanto os membros da Ibas reforçaram “seu compromisso com a soberania e a integridade territorial da Síria” (Declaração de Tshwane, § 82), eles reafirmaram sua crença de que um processo de mudanças políticas liderado pela Síria seria a melhor maneira de acabar com o conflito e de assegurar a proteção da população civil. Logo, como parte dos esforços internacionais de pôr um fim na crise síria, os países do Ibas mandaram, em agosto de 2011, uma delegação conjunta à Síria para contribuir com a implementação de reformas prometidas pelo governo sírio.

Portanto, de acordo com a perspectiva brasileira, intervenções militares demonstraram que a Responsabilidade de Proteger pode ser utilizada indevidamente e agravar conflitos existentes, e dessa maneira o uso da força nesses campos deve ser acompanhado da ideia de Responsabilidade ao Proteger. Essa deve ser uma das principais preocupações que sustentam a nova abordagem do Brasil quanto à doutrina da Responsabilidade de Proteger.

Podem-se certamente adicionar ao conjunto de razões por trás da posição do Brasil as oportunidades previstas pelo ministro das Relações Exteriores de participar de debates sobre a definição da agenda de segurança mundial em uma posição privilegiada, na medida em que o Brasil nutre a imagem de um país pacifista, o que legitimaria seu apelo por uma diplomacia preventiva antes de qualquer ação militar. Os cálculos feitos pelo ministro das Relações Exteriores brasileiro envolvem o pressuposto de que seria menos oneroso para Brasília, em ângulos tanto políticos quanto econômicos, trabalhar nas definições legais e nos conceitos operacionais do que custear intervenções humanitárias que poderiam levar a intervenções militares precoces em países estrangeiros.

Ao focar procedimentos em vez de princípios e normas, o Brasil busca proteger-se contra os riscos de intervenção (soberania negativa). Além do mais, o país ainda se vê como um alvo em potencial de tais empreendimentos “humanistas” e “civilizatórios”. Por outro lado, a Responsabilidade ao Proteger foi uma tentativa de obter reconhecimento internacional como um país que realmente se importa com a gestão coletiva da ordem mundial. Não obstante, o Brasil segue enfrentando um clássico dilema de potências médias: ao propor regras mais criteriosas para intervenções humanitárias, absorve-se, de alguma forma, a normatividade relacionada com a Responsabilidade de Proteger.

Dawisson Belém Lopes é professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Aziz Tuffi Saliba é professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Artigo submetido em novembro de 2016.

[1]  Parágrafos 138 a 140, em –  http://www.un.org/womenwatch/ods/A-RES-60-1-E.pdf

[2] Ver em http://www.globalr2p.org/media/files/concept-paper-_rwp.pdf, parágrafo 10

[3] Pronunciamento de Antonio Patriota em debate sobre a Responsabilidade ao Proteger na ONU, em 21 de fevereiro de 2012, em http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/8653-pronunciamento-do-mi

[4] Ver em http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/imprensa/comunicados-de-imprensa/215-vi-cupula-do-brics-declaracao-de-fortaleza

[5] Ver em http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/2816-v-cupula-do-forum-de-dialogo-india-brasil-e-africa-do-sul-ibas-declaracao-de-tshwane-18-10-2011