O nexo entre construção da paz, desenvolvimento e humanitarismo em contextos de conflito: o respeito aos limites

Jens Pedersen

A era pós-Guerra Fria assistiu a um aumento nas missões de manutenção da paz e das chamadas iniciativas multilaterais de construção da paz. No mesmo período, houve um aumento significativo no número e no tamanho das operações humanitárias em regiões afetadas por conflitos, assim como no número de organizações que se qualificam de humanitárias. No entanto, esse crescimento não foi acompanhado por aperfeiçoamentos ou pelas necessárias mudanças de políticas.

A construção da paz, e a manutenção da paz que muitas vezes a precede e passa a ser seu componente, era no passado concentrada no papel de uma força neutra e frequentemente multilateral formada por soldados de países que não tinham nenhum interesse explícito no resultado da operação. Essa força seria encarregada de observar e monitorar um cessar-fogo preexistente, com recursos militares limitados que podiam ser usados para a autodefesa. Recentemente, porém, a manutenção da paz e a construção da paz assumiram um papel mais engajado e foram implementadas especialmente em conflitos caracterizados como “assimétricos”, de contrainsurgência ou civis. Além disso, os mandatos dessas operações foram ampliados para incluir um forte foco na proteção de civis.[1]

Há várias situações na África que refletem esse papel que evoluiu de mero monitoramento e autodefesa para tomar parte do conflito propriamente dito ou, de maneiras mais sutis, colocando a manutenção e a construção da paz decididamente de um lado de um conflito interno. Na República Democrática do Congo, a força da ONU, Monusco, também tem o mandato de realizar operações militares para neutralizar grupos armados, enquanto no Sudão do Sul os mandatos da força de paz, a Unmiss, e de órgãos da ONU como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) incluíram o apoio ao Estado em áreas como a reforma do setor de segurança, com ênfase no estabelecimento do Estado de direito e, em graus variáveis, na proteção de civis. Na Somália, o processo de construção da paz em áreas sob controle do governo federal caminha junto com a expansão desse território por meios militares que são pagos e implementados pelos mesmos atores que apoiam a construção da paz.[2]

Na mesma linha, o rosto e a prática das operações humanitárias e do humanitarismo também mudaram. O humanitarismo e a ajuda humanitária se tornaram um sistema massivo formado por uma miríade de organizações internacionais, nacionais e locais. Em 2015, o valor monetário da resposta humanitária foi de 24,5 bilhões de dólares.[3] As mudanças na dimensão das operações humanitárias ocorreram em paralelo com mudanças em práticas e uma interpretação alargada dos princípios e das funções básicas da ajuda humanitária.[4] Quando os doadores começaram a financiar a ajuda humanitária junto com a ajuda ao desenvolvimento, o panorama, as condutas e as ações de ajuda humanitária ficaram enredados com intenções e uma agenda inerentemente políticas — eufemisticamente relacionadas com as expressões “construção de Estado”, “construção da paz”, “resiliência”, “reduzir desigualdades” e “lidar com as raízes do conflito”.

Há três problemas com essas mudanças na ajuda humanitária e no modo como elas aconteceram. Primeiro, as intenções que informam a noção e o desejo de construir a paz e o Estado vêm de uma narrativa da democracia liberal, patrocinada por doadores ocidentais com um objetivo político e ideológico claro. Quando organizações humanitárias se tornam parte de um processo cujo objetivo último é uma empreitada ideológica, objetivos puramente humanitários não podem tomar o lugar central. Em segundo lugar, independentemente da ideologia que embasa a agenda, quando as agências e a ação humanitária se tornam os proponentes de um processo que favorece um dos lados do conflito em nome da construção da paz — seja ele um Estado, uma comunidade ou um indivíduo —, um lado foi escolhido. O terceiro problema é a trajetória que o humanitarismo tomará agora, ou já tomou em alguns casos. Essa trajetória que dilui os princípios ao expandir o papel e a dimensão da ajuda humanitária parece agora cada vez mais irreversível.

A ajuda humanitária não pode construir a paz, e a construção da paz não pode salvar vidas de maneira imparcial

O imperativo da ação humanitária é salvar vidas e aliviar o sofrimento, e os princípios que informam essa ação são aqueles da imparcialidade, da independência e da neutralidade. A imparcialidade é imediatamente minada quando a ajuda humanitária é dada como parte de um processo político mais amplo, e não mais de acordo com as necessidades. A independência é esvaziada e anulada quando aqueles que controlam os fundos têm na prática o poder de determinar onde eles serão alocados — ou, o que é mais frequente, onde não serão alocados. Quando a ajuda humanitária é dada em nome da construção da paz, e não mais baseada nas necessidades, a ajuda se torna política, e não mais estritamente humanitária.

Em outras palavras, a essência do humanitarismo é sequestrada. A neutralidade também vem ao caso, uma vez que a maioria dos conflitos na África hoje é intraestatal, e não conflitos de Estado contra Estado.[5] Quando a ajuda humanitária e doadores internacionais se posicionam firmemente do lado do Estado, o princípio da neutralidade se perde em meio a objetivos bem-intencionados. Tudo isso trará prejuízo à ajuda humanitária baseada em princípios, e não necessariamente construirá a paz.

Um relatório recente do Overseas Development Institute, um proponente de muitos dos aspectos da fusão entre ação humanitária e processos políticos, sugeriu que as organizações humanitárias deveriam trabalhar mais próximas de parceiros da ajuda ao desenvolvimento, e que a ação puramente humanitária seria restrita a um número limitado de contextos e organizações.[6]

Enquanto os acadêmicos e técnicos do desenvolvimento dizem em relação à ajuda humanitária que “não podem fazer um sem o outro”, a construção da paz invade o campo da ajuda humanitária. Isso apaga as linhas entre três conceitos diferentes, em nome da colaboração e da coordenação. Em última instância, dilui a ação humanitária até que ela se torne tudo e essencialmente nada. Esse processo mina o objetivo que o humanitarismo busca alcançar: os direitos do indivíduo de receber assistência, cuidados médicos ou comida, baseado puramente nas necessidades da pessoa ou de um grupo específico.

Mulheres na lavanderia do centro de saúde de MSF em Kabo, República Centro-Africana; conflito eclodiu no país em 2012 (Foto: Sandra Smiley/MSF)

A noção do imperativo humanitário e da boa intenção de salvar vidas é sedutora. Por isso, temos visto uma alta demanda pelo “serviço humanitário” e a necessidade óbvia de cooptar a expressão “operação humanitária”. No passado, isso aconteceu com objetivos políticos, militares e de desenvolvimento. “Intervenções humanitárias” foram deslanchadas em nome do imperativo humanitário de salvar vidas, mas com a intenção de mudança de regime na Líbia, no Iraque e na Iugoslávia; “operações humanitárias” fizeram parte da estratégia de conquistar os corações e mentes de populações civis dentro de áreas tomadas em operações militares e elegíveis para a ajuda humanitária no Afeganistão, na República Democrática do Congo e no Mali.

Não há nada de errado em si com a construção da paz e a construção de Estados. É com base nas intenções e nos motivos subjacentes que o nexo entre construção da paz e humanitarismo deve ser examinado.

É preciso escrutinar o contexto nos quais as organizações humanitárias operam e o que motiva doadores, agências internacionais, atores que negociam a paz e exércitos quando invocam os imperativos humanitários. O crescente apelo para que as organizações humanitárias sejam sensíveis ao conflito, e levem em consideração dinâmicas locais, comunitárias, nacionais e regionais, exige um questionamento do que está por trás dos serviços que são prestados como parte da construção da paz, e que interesses influenciam essas ações. Na maioria das vezes, eles não estão estritamente relacionados com os objetivos do humanitarismo nem com os princípios básicos que deveriam guiar operações humanitárias.

A despeito disso, os dois fenômenos não são mutuamente excludentes. No entanto, só podem coexistir se houver um entendimento claro dos papéis, das responsabilidades e das limitações de cada um em uma situação de conflito. Um respeito a esses limites seria o melhor que os dois campos podem dar um ao outro e àqueles que procuram assistir. A ajuda humanitária não pode construir a paz, e a construção da paz não pode salvar vidas de maneira imparcial em momentos de emergência e conflito.

Em seu relatório anterior à Cúpula Humanitária Mundial, realizada em Istambul em maio de 2016, o secretário-geral da ONU indicou que as práticas dos doadores no financiamento da ajuda ao desenvolvimento e da ajuda humanitária poderiam levar a uma fragmentação e criar incentivos para que os dois campos trabalhassem isoladamente. Em suas palavras, são necessárias novas maneiras de trabalhar para atender às necessidades de 120 milhões de pessoas que não estão experimentando os dividendos do desenvolvimento e da construção da paz. São necessários maiores investimentos para garantir que as crescentes necessidades humanitárias sejam supridas e que as vulnerabilidades das pessoas sejam reduzidas a médio e longo prazos, incluindo uma maior atenção para a prevenção de conflitos e a construção da paz.[7]

No entanto, como vimos quando o Sudão do Sul explodiu em um conflito em 2013, os resultados de fundir e amontoar tudo e todos em um nexo de responsabilidade compartilhada vieram em detrimento das pessoas que sofrem as consequências da falta de desenvolvimento e da construção da paz mal encaminhada.[8],[9] É possível investir no futuro, que seriam as tarefas do desenvolvimento e da construção da paz, esperando um retorno lá na frente; mas não é admissível deixar de responder intensamente quando as vidas das pessoas estão em jogo, que é do que trata a ajuda humanitária. É deplorável planejar o futuro de pessoas em necessidade ao mesmo tempo em que não se pode ajudá-las quando suas necessidades são maiores.

Jens Pedersen é assessor humanitário de Médicos Sem Fronteiras na África do Sul e representante da organização na União Africana. Artigo publicado originalmente em maio de 2016 no site MSF Analysis.

[1] Haysom; Pedersen. Robust peacekeeping in Africa: the challenge for humanitarians. Humanitarian Practice Network, out. 2015. Disponível em: <http://odihpn.org/magazine/robustpeacekeeping-in-africa-the-challenge-for-humanitarians/>.

[2] Amisom. Amisom mandate. 2016. Disponível em: <http://amisom-au.org/amisom-mandate/>.

[3] Global Humanitarian Assistance. Global Humanitarian Assistance report. 2015. Disponível em: <http://www.globalhumanitarianassistance.org/wp-content/uploads/2015/06/GHA-Report-2015_-Interactive_Online.pdf>.

[4] Whittall. Is humanitarian action independent from political interests?. International Journal on Human Rights, issue 21, ago. 2015.

[5] Ferreira, R. Irregular war in African conflicts. Scientia Militaria: South African Journal of Military Studies, v. 38, n. 1, 2010.

[6] Overseas Development Institute. Time to let go: a three point proposal to change the humanitarian system. 2016. Disponível em: <https://www.odi.org/hpg/remake-aid/>.

[7] One humanity, shared responsibility: report of the United Nations secretary general for the world humanitarian summit. 31 jan. 2016. Disponível em: <http://sgreport.worldhumanitariansummit.org/>.

[8] MSF. South Sudan marks two years of conflict since fighting broke out in Juba. 15 dez. 2015. Disponível em: <https://www.msf.org.za/msf-publications/south-sudan-marks-two-years-conflict-fighting-broke-out-juba>.

[9] Cornish, S. Was South Sudan a preventable crisis?. Huffington Post, 18 jul. 2014. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.ca/stephen-cornish/south-sudan-crisis_b_5600189.html>.