As operações de paz no cenário internacional

Ramon Blanco

Há poucas dúvidas de que a superação dos conflitos violentos pelo globo é uma das mais preocupantes questões internacionais. Assim, a construção da paz torna-se um pilar fundamental das relações internacionais, e as operações de paz enviadas para cenários pós-conflito são uma dinâmica central na política internacional. Essas operações são o epicentro de um entendimento internacional que funde noções fundamentais das relações internacionais — segurança, desenvolvimento e paz. Segundo esse entendimento, sem segurança não há a possibilidade de haver desenvolvimento. Este, por sua vez, não somente reforça como é a condição essencial para o incremento da segurança. Ambos, juntos, são entendidos como pilares indispensáveis para a transformação dos conflitos violentos pelo planeta e a construção da paz no cenário internacional.

Consequentemente, não é exagerado dizer que as operações de paz, sobretudo aquelas conduzidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), são uma dinâmica central das relações internacionais contemporâneas. Estas são entendidas, pela própria ONU, como “operações destacadas a campo de modo a prevenir, gerir e/ou resolver os conflitos violentos, ou reduzir o risco de sua recorrência”.[1] Desde sua criação, já foram destacadas cerca de 70 operações de paz, contando com dezenas de milhares de indivíduos de mais de 120 países. Atualmente, há 16 operações ativas em quatro diferentes continentes.[2]

As operações de paz nem sempre tiveram as mesmas características. Ao contrário, as propriedades de uma operação de paz, assim como o próprio entendimento do que é a paz subjacente a essas operações, modificaram-se significativamente ao longo do tempo.[3] É precisamente o delineamento dessas transformações o cerne deste artigo, que se deterá, primeiramente, no período da Guerra Fria e, posteriormente, no período pós-Guerra Fria.[4]

Soldado brasileiro da força da ONU em Cité Soleil, Porto Príncipe; fim da Guerra Fria multiplicou operações (Foto: Julie Remie)

A construção da paz durante a Guerra Fria

Durante a Guerra Fria, as problematizações relativas à conflituosidade no cenário internacional giravam, sobretudo, em torno dos conflitos armados entre Estados. Nessa compreensão, eram excluídos da reflexão os assuntos e atores não estatais, assim como as fontes dos conflitos violentos que eram internas aos Estados. A paz, por sua vez, também era entendida de modo bastante limitado. Seu entendimento ancorava-se em uma compreensão essencialmente estadocêntrica e militarizada. Não por acaso, era compreendida basicamente como o simples inverso da guerra e, naquele momento, entendida como um mero cessar-fogo entre Estados.

Esse entendimento materializava-se nas operações de paz da época. Em maio de 1948, a ONU enviou a campo o primeiro instrumento que pode ser entendido como uma operação de paz — a Organização das Nações Unidas para Supervisão da Trégua (UNTSO, em inglês).[5] O instrumento tinha como objetivo buscar o fim das hostilidades e observar o cessar-fogo no Oriente Médio no pós-guerra de 1948 entre árabes e israelenses. Essa foi a primeira operação de paz da ONU, ativa até hoje,[6] e suas características moldaram as propriedades das operações de paz destacadas durante o período da Guerra Fria.

As operações de paz significavam basicamente o envio de um pequeno contingente militar a campo com o objetivo restrito de monitorar um cessar-fogo ou patrulhar um território neutro entre combatentes anteriormente em conflito. Assim, as operações de paz eram essencialmente uma pequena força militar que atuava como uma espécie de tampão entre dois Estados beligerantes. Elas funcionavam como um instrumento de gestão, contenção ou mesmo supressão dos conflitos violentos, de modo que eles não escalassem ou transbordassem para outras localidades, e não como um instrumento de transformação e superação dos conflitos. Desse modo, lidavam com os sintomas dos conflitos violentos pelo globo, e não com suas raízes mais profundas. Algumas operações de paz características daquele período são, por exemplo: a Força de Emergência das Nações Unidas enviada ao Egito após a Guerra do Suez (1956-1967), o Grupo de Observação Militar da ONU destacado para supervisionar o cessar-fogo entre Índia e Paquistão (1949) e a Força de Manutenção da Paz da ONU no Chipre (1964), entre outras.[7]

A construção da paz no pós-Guerra Fria

O fim da Guerra Fria trouxe modificações nas características das operações de paz. Isso se deve, entre outras questões, ao fato de os conflitos violentos intraestatais passarem a ser uma preocupação central no que toca à conflitualidade internacional. Apesar de estes serem a grande maioria dos conflitos desde o fim da Segunda Guerra Mundial,[8] a lógica bipolar da Guerra Fria os invisibilizava. Com o fim da Guerra Fria, as duas potências, Estados Unidos e Rússia, não estavam mais dispostas a manter os mesmos níveis elevados de gastos militares e de assistência econômica em qualquer parte do globo. Com essa retração, diferentes instabilidades, anteriormente suprimidas pelos dois polos de poder da Guerra Fria, tornaram-se visíveis.

Além disso, a resolução e a transformação dos conflitos violentos, e não sua mera gestão, passaram a ser o objetivo central no que tange à construção da paz no cenário internacional. Assim, as estruturas internas e as raízes desses conflitos passaram a ser problematizadas. Desse modo, a paz passou a ser algo mais profundo do que o mero cessar-fogo entre Estados beligerantes. No pós-Guerra Fria, a construção da paz passou a ser a operacionalização da reestruturação das esferas política, econômica, social e securitária dos Estados onde tais conflitos violentos ocorrem.

Esse entendimento de paz ganhou materialidade no cenário internacional por meio da Agenda para a Paz, lançada pela ONU em 1992[9] e que permanece presente em documentos recentes. Na Agenda para a Paz, a ONU delineou seus instrumentos no que se refere à construção da paz internacional e precisamente por isso teve papel estruturante no cenário pós-Guerra Fria.

Os instrumentos delineados foram: (1) a prevenção de conflitos, que visa a uma atuação antes da eclosão de um conflito violento; (2) o peacemaking, que busca, ao atuar em um conflito ativo, sua resolução por meios não violentos, como a mediação ou a negociação; (3) o peace enforcement, que, por intermédio da utilização da força, ancorada no Capítulo VII da Carta da ONU[10] e devidamente autorizada pelo Conselho de Segurança, busca pôr fim a um conflito violento ativo; (4) o peacekeeping, que busca atuar quando há um cessar-fogo visando a preservar a paz, mesmo que frágil, de modo a assistir ao processo de reconstrução pós-bélica; e (5) o peacebuilding, que, tendo como horizonte o longo prazo, busca superar as estruturas profundas que levaram ao conflito violento.[11]

Desde 1948, já foram destacadas cerca de 70 operações de paz, com milhares de indivíduos de mais de 120 países

Consequentemente, as operações de paz foram transformadas de modo que pudessem dar resposta à nova realidade. Assim, tiveram seu escopo de atuação ampliado e aprofundado, e incorporaram diferentes elementos. Passaram a atuar nas esferas, por exemplo, política, econômica, social e securitária, com ações de curto, médio e longo prazo. Nesse sentido, além de integrarem também civis em suas atividades, essas operações passaram a atuar em áreas tão diversas como: (1) manutenção da lei e da ordem; (2) realização de eleições; (3) escrita de constituições; (4) fomento dos direitos humanos; (5) reforma da polícia e do exército; (6) (re)estruturação da esfera econômica; (7) atuação em dimensões sociais como saúde, educação e habitação; e (8) a própria (re)construção do Estado, para mencionar apenas algumas. Alguns casos emblemáticos desse tipo de atuação são, por exemplo, o Timor-Leste, o Haiti e o Kosovo.

Veículo blindado de força de paz da ONU passa por deslocados internos em Kibati, na República Democrática do Congo (Foto: Dominic Nahr)

É previsível que as características das operações de paz continuarão mudando ao longo do tempo. Apesar de não se saber a forma que terão no futuro, sabe-se que variarão de acordo com dois elementos centrais: por um lado, o cenário internacional que as enquadra; por outro, o entendimento de conflitualidade que molda a operação. Mais do que isso, sabe-se que as operações de paz continuarão, indiscutivelmente, a ser o pilar fundamental no que tange à construção da paz e à superação dos conflitos violentos pelo globo no cenário internacional de nosso tempo.

* Ramon Blanco, doutor em política internacional e resolução de conflitos pela Universidade de Coimbra, é professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana, onde coordena o Núcleo de Estudos para a Paz e a Cátedra de Estudos para a Paz, e colabora no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná. Artigo submetido em setembro de 2016.

[1] UN. United Nations peacekeeping operations principles and guidelines. 2008, p. 98. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/documents/capstone_eng.pdf.

[2] Para mais informações, ver: <http://www.un.org/en/peacekeeping/operations/history.shtml>.

[3] Para uma visão aprofundada dessas transformações, ver, por exemplo: Blanco, R. Del mantenimiento de la paz al proceso de formación del Estado: un esbozo de los esfuerzos de la ONU para la paz internacional. Foro Internacional, v. 216, n. 2, p. 266-318, 2014; e Kenkel, K. M. Five generations of peace operations: from the “Thin Blue Line” to “Painting a Country Blue”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 56, n. 2, p. 122-143, 2013.

[4] Para mais informações sobre operações de paz em períodos anteriores, ver, por exemplo: Bellamy, A.; Williams, P. Understanding peacekeeping. Polity Press, 2010. p. 71-81.

[5] United Nations Truce Supervision Organization.

[6] Para mais informações, ver: <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/untso/>.

[7] Ver Newman, E.; Paris, R.; Richmond, O. P. Introduction. In: ______; ______; ______ (Ed.). New perspectives on liberal peacebuilding. Tóquio/Nova York/Paris: United Nations University Press, 2009. p. 3-25.

[8] Para tal, ver: Pettersson, T.; Wallensteen, P. Armed conflicts, 1946-2014. Journal of Peace Research, v. 52, n. 4, p. 536-550, p. 539, 2015.

[9] Para mais informações, ver: An Agenda for Peace — A/47/277 — S/24111. 1992. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/259/61/PDF/N9225961.pdf?OpenElement>.

[10] Para mais informações sobre a Carta da ONU, ver: <http://www.un.org/en/sections/un-charter/un-charter-full-text/index.html>.

[11] Para mais informações sobre os instrumentos, ver: UN. United Nations peacekeeping operations principles and guidelines. 2008. Disponível em: <http://pbpu.unlb.org/PBPS/Library/Capstone_Doctrine_ENG.pdf>.