Do oportunismo financeiro à coerência de princípios
Jonathan Whitall
No dia 17 de junho de 2016, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) organizou uma entrevista coletiva para denunciar as políticas da União Europeia (UE) para a migração. A entrevista foi convocada com a mensagem: “A política nefasta dos Estados europeus para a migração coloca o direito de asilo em risco em todo o mundo”.
No momento em que aumentou massivamente sua resposta médica e humanitária para atender migrantes e refugiados na Europa, incluindo uma operação sem precedentes de busca e resgate no Mediterrâneo, MSF testemunhou em primeira mão as consequências dessas políticas restritivas, como documentado no relatório Um percurso de obstáculos rumo à Europa, publicado no início de 2016. Além disso, com o Quênia usando a política europeia para justificar sua decisão de fechar o campo de refugiados de Dadaab, o direito de buscar refúgio e pedir asilo parece estar sob ameaça globalmente. A UE começou negociações com outros países “geradores de migrantes” para acordos similares ao feito com a Turquia em março de 2016.
Como subtexto dessa mensagem principal, e em consequência dessas políticas, MSF anunciou que iria suspender o recebimento de fundos da UE, de seus países-membros e da Noruega. Naturalmente, essa segunda informação virou a manchete das reportagens sobre as objeções de MSF às políticas migratórias da UE. A decisão de não aceitar mais os fundos pode ter parecido fácil, mas foi e é objeto de um ferrenho debate dentro de MSF.
Para uma organização que tem todos os seus centros operacionais baseados na Europa, com profissionais majoritariamente europeus, a decisão foi bastante arriscada. Mas isso é válido também para a decisão de denunciar as políticas migratórias restritivas, uma mensagem que terá apoio público limitado nas sociedades europeias. A decisão sobre os fundos, porém, é mais controvertida e precisa ser colocada em uma perspectiva histórica.
MSF, como qualquer outra organização de ajuda, começou dependendo em grande parte, e inicialmente exclusivamente, de subsídios estatais. No início, o governo francês não apenas financiava, mas até contratava as primeiras equipes médicas de MSF em campo. Quando a organização se espalhou por toda a Europa, o financiamento também se diversificou para outros países-membros da então Comunidade Econômica Europeia e depois para sua agência especializada, a Echo (Diretório Geral para Operações Europeias de Proteção Civil e Ajuda Humanitária). Desde então, a organização já havia encerrado a relação de financiamento com o Estado francês muito antes de a mesma decisão ser tomada para toda a UE.
A dependência de financiamento estatal sempre foi uma relação desconfortável; é óbvio que Estados agem primeiro e principalmente em seu próprio interesse, uma vez que sua responsabilidade primária é governar em nome de seu próprio país e no de seus cidadãos. Como consequência, em suas primeiras décadas de existência MSF aspirava a ser independente, mas percebeu que essa ambição podia ser tolhida por seus laços financeiros.
A crise na antiga Iugoslávia, entre 1993 e 1995, é um exemplo claro dessa dependência: os países europeus, à frente da Echo, colocaram tanto dinheiro na ajuda humanitária para aquele conflito em suas portas que as organizações de ajuda, incluindo MSF, se tornaram financeiramente dependentes da continuação desses projetos. Aproximadamente 25% dos gastos anuais de MSF eram relacionados com a Bósnia, apesar de ela representar uma proporção muito menor dos refugiados e das vítimas da guerra no mundo. As escolhas de projetos claramente se pautavam pelas finanças, e não exclusivamente pelas necessidades médicas. Essa limitação foi reconhecida em 1995, quando MSF, como movimento internacional, realizou a primeira de suas duas “cúpulas sobre políticas”, em Chantilly, na França. O documento final aprovado continha esta decisão sobre financiamento: “A preocupação com a independência é também financeira. MSF vai se empenhar para garantir o máximo de recursos privados, para diversificar seus doadores institucionais e, se necessário, para recusar financiamento que possa afetar sua independência” (Chantilly, capítulo 5, 1995).
Essa decisão teve um efeito profundo na evolução da estrutura de financiamento de MSF. O investimento na captação de fundos privados aumentou massivamente, fazendo com que a dependência de contratos com governos diminuísse de 50% do orçamento, em 1996, para menos de 10%, atualmente.
A segunda parte da decisão também foi implementada, caso a caso, com a recusa de doações de países que têm forças em campo em intervenções militares. Em 2004, foi tomada a decisão de não receber mais fundos do governo americano, suspensão que continua em vigor até hoje e ainda é explicada no website de MSF-EUA com o seguinte argumento: “O governo americano está frequentemente envolvido em muitas das crises às quais MSF responde. É importante que continuemos independentes dessa — e de fato de qualquer — agenda ou posição política de governos, sob risco de afetarmos a capacidade de MSF de operar um programa e/ou garantir a segurança de nossas equipes”.
A decisão de suspender a aceitação de fundos da UE e de países da UE pode ser descrita em termos similares, e ao menos parecer coerente com decisões anteriores a respeito de doações de Estados. Menos conhecida, mas igualmente pertinente depois de Chantilly, foi a decisão de estabelecer critérios para os países nos quais MSF pode desenvolver atividades de captação de fundos, privados ou públicos. Essas atividades são levadas a cabo apenas em países onde existem razoáveis liberdade de expressão e liberdade de associação. Essa política é a razão pela qual MSF não aceita dinheiro de países como Rússia, Turquia ou Arábia Saudita.
Há 20 anos, MSF pode ter desejado aplicar seus princípios de maneira tão rigorosa quanto hoje, mas não era capaz de fazer isso com uma dependência financeira de 50%. Hoje, quando a organização pode funcionar financeiramente sem nenhum contrato com os governos, é possível fazer isso.
Ainda assim, há desconforto dentro de MSF com a decisão sobre os fundos da UE, embora ela possa ser explicada como uma continuação lógica da deliberação de Chantilly e de orientações anteriores sobre o que seriam fundos de governo “aceitáveis”. Parte do argumento é que a condicionalidade que existe no acordo entre a UE e a Turquia — de ajuda em troca do controle de fronteiras — não está explícita nos contratos de financiamento da Echo e dos países-membros da UE. A Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) estabelecia condições como a prerrogativa de veto a profissionais e a companhias farmacêuticas das quais se podiam comprar medicamentos, mas a Echo e os países-membros da UE não estabelecem esse tipo de condicionalidade. Como MSF já não recebia dinheiro da UE nem dos países da UE para seus projetos na Europa e na Turquia, por que recusar o dinheiro deles para projetos em outras partes do mundo? A resposta mais curta talvez seja: “porque podemos”.
Nem a política aprovada em Chantilly nem a atual recusa de dinheiro russo, turco ou saudita estabelecem como critério a existência de restrições explícitas nos contratos. Esse só é o caso para a Usaid, e mesmo na justificativa que consta do website de MSF-EUA ela é citada como uma preocupação secundária. Há 20 anos, MSF pode ter desejado aplicar seus princípios de maneira tão rigorosa quanto hoje, mas não era capaz de fazer isso com uma dependência financeira de 50%. Hoje, quando a organização pode funcionar financeiramente sem nenhum contrato com governos, é possível fazer isso. Nenhum projeto médico será fechado ou reduzido em consequência da suspensão de fundos da UE e de seus países-membros.
As políticas de contenção da UE em relação à migração não são exatamente novas — em 2004, elas estavam presentes como uma das condições básicas do “acordo sujo no deserto” entre Tony Blair e o coronel Muammar al-Gaddafi. Em troca do restabelecimento completo de relações diplomáticas, exigiu-se da Líbia que bloqueasse a saída de migrantes para a Europa, com a UE financiando acampamentos no deserto líbio onde eles seriam mantidos. A assinatura do acordo entre a UE e a Turquia, porém, tornou explícita a ligação entre financiamento humanitário e contenção. Dinheiro — nada menos do que 6 bilhões de euros — está no centro do acordo. Embora a UE não seja uma organização humanitária, a Echo certamente é, pela existência do “H” em sua sigla. E a Echo é responsável por 1 bilhão do montante prometido à Turquia. No momento em que a UE negocia acordos similares, incluindo incentivos de ajuda humanitária, com muitos outros países, MSF não pode mais concluir que o dinheiro gasto no Sudão do Sul, no Quênia ou na República Centro-Africana não tenha o mesmo objetivo explícito de contenção.
Finalmente, há desconforto com a visibilidade dessa suspensão. E se MSF de repente precisar de dinheiro e tiver de se arrastar de joelhos até o pote de mel em Bruxelas? Choques financeiros repentinos acontecem em grandes emergências, como desastres naturais. No entanto, durante desastres naturais as doações privadas a MSF costumam aumentar. As duas quedas históricas na proporção do financiamento de governos a MSF aconteceram depois do tsunami na Ásia e da epidemia de Ebola na África Ocidental. Outras emergências repentinas em geral se devem à irrupção de conflitos. E na maioria dos conflitos MSF recusa fundos estatais por causa do envolvimento militar de países da UE ou de outros países ocidentais, o que faz com que contratos com governos não sejam uma opção para financiar projetos médicos nessas situações. Ninguém pode prever o futuro, e portanto não existe certeza de que não vai acontecer, mas a evolução do financiamento de MSF nos últimos anos sugere que a possibilidade de uma virada desse tipo é muito pequena.
A dependência de financiamento estatal sempre foi desconfortável; é óbvio que Estados agem primeiro em seu próprio interesse
Essa tomada de posição pode soar moralizante ou arrogante. Ela certamente é arrogante aos olhos de governos europeus que foram dispensados por uma organização que financiaram durante 40 anos, e possivelmente é arrogante aos olhos de cidadãos europeus preocupados com o impacto da migração e que podem ser ou não doadores de MSF. Mas será que ela também é arrogante aos olhos de sírios retidos nas fronteiras da Turquia ou da Jordânia, ou dos milhões em acampamentos em volta da Síria que escutam dos países europeus que eles deveriam se contentar em ficar lá e receber algum dinheiro? Aos olhos dessas pessoas, a arrogância pode estar em pregar princípios de independência e imparcialidade, e ao mesmo tempo aceitar o dinheiro que viola esses princípios. Debateu-se até se a decisão de MSF significa que doadores privados que concordam com as políticas da UE também deveriam ser rejeitados. Além da noção impraticável de uma “polícia do pensamento” que seria necessária para implementar um esquema desse tipo, há uma diferença entre uma opinião e uma política. Cidadãos individualmente não têm poder para recusar um pedido de refúgio, fechar uma fronteira, deportar pessoas ou lançar uma campanha de busca e destruição contra traficantes de pessoas. Os Estados têm o monopólio da violência “legal”. Os cidadãos podem fazer suas próprias escolhas de governos com o voto (se tiverem sorte) e de organizações que apoiam. Isso já aconteceu depois do anúncio sobre os fundos europeus: algumas pessoas cancelaram seu apoio a MSF, enquanto outras passaram a apoiar a organização.
A decisão de recusar os fundos é certamente uma declaração moral. A carta de MSF proclama princípios de neutralidade, independência e, acima de tudo, imparcialidade. Princípios são, por definição, um requerimento moral, regras às quais MSF escolheu aderir. Não há nada do que se envergonhar aí. MSF considera que as políticas de financiamento da UE e de seus países-membros minam as obrigações de asilo e rompem a imparcialidade ao explicitamente fazer da ajuda humanitária um instrumento de controle de fronteiras. Isso implica que fazer jus à imparcialidade exige recusar esse dinheiro. Proclamar princípios para comprometê-los quando você não precisa fazê-lo é incoerente.
MSF não esteve isenta de sistemas humanitários historicamente dependentes de Estados e sempre percebeu que isso levava a compromissos em relação a princípios. Esse oportunismo financeiro de seu começo, no entanto, não obriga a organização a continuar a comprometer seus princípios autoproclamados quando não precisa mais fazê-lo. Gradualmente, à medida que MSF ganhou independência financeira, esses princípios passaram a ser aplicados de forma mais sólida, na recusa de dinheiro dos Estados Unidos, de Estados implicados em conflitos e agora com a decisão de suspender o financiamento da UE. É uma evolução lógica do oportunismo financeiro para a coerência de princípios.
* Jonathan Whitall é diretor de Análise de Médicos Sem Fronteiras em Bruxelas. Este artigo foi publicado originalmente em junho de 2016 no site MSF Analysis.