Fluxos mistos e o papel do Acnur de assegurar os direitos dos refugiados
Acnur Brasil
As pessoas migram por uma variedade de razões. O termo “migrante” abrange qualquer pessoa que se muda para um país estrangeiro por um determinado período de tempo. Migrantes, especialmente os migrantes econômicos, em geral optam por mudar-se para ter uma vida melhor. Algumas pessoas, por outro lado, são forçadas a fugir para salvar suas vidas ou preservar sua liberdade. Dentro de algumas condições, esses migrantes forçados podem ser considerados “refugiados”.
Em um contexto de fluxos migratórios mistos, migrantes e refugiados utilizam cada vez mais as mesmas vias e meios de transporte para chegar a um destino final. De igual forma, os termos “migrantes” e “refugiados” se confundem muitas vezes como sinônimos na mídia e em discussões públicas. No entanto, é essencial considerar que os dois têm um tratamento jurídico e um sistema de proteção consideravelmente diferente um do outro, o que gera desafios para os Estados e riscos específicos para as pessoas que fazem parte desses movimentos.
Migrantes são protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos. Essa proteção deriva de sua dignidade fundamental enquanto seres humanos. Refugiados são especificamente definidos e protegidos pelo direito internacional dos refugiados. São definidos como pessoas que estão fora de seus países de origem por fundados temores de perseguição, conflito, violência ou outras circunstâncias que perturbam seriamente a ordem pública e que, como resultado, necessitam de “proteção internacional”.
Um elemento fundamental que deve ser explicitado ao se diferenciar refugiados de migrantes é o princípio de non-refoulement (não-devolução), o qual define que nenhum país pode deportar ou “devolver” (refouler) um refugiado, contra a vontade do mesmo, em quaisquer ocasiões, para um território onde ele ou ela sofra perseguição. A relevância da comparação condiz com as consequências desse ato: um migrante deportado pode seguir com sua vida, mesmo em condições adversas, enquanto um refugiado deportado corre risco de vida. Portanto, os refugiados não apenas são migrantes que chegam a um país diferente da sua nacionalidade, mas são especificamente pessoas que foram coagidas a deixar seu país de origem e cujo retorno é incerto e inseguro.
Migrantes e refugiados utilizam cada vez mais as mesmas vias e meios de transporte para chegar a um destino final, mas têm tratamento jurídico e sistemas de proteção diferentes
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) é uma agência da ONU com o mandato específico de dirigir e coordenar a ação internacional para a promoção de proteção e soluções duradouras para refugiados, solicitantes de refúgio, apátridas e, em alguns casos, deslocados internos. De acordo com os dados consolidados do mais recente Relatório Tendências Globais do Acnur, referente ao ano de 2015, há no mundo 65,3 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar seus lares devido a perseguições, conflitos armados, violência generalizada e violações dos direitos humanos. Se essas pessoas fossem agrupadas em um único país, seria o 21º em ordem de grandeza de sua população.
Do total de pessoas que tiveram que abandonar seus lares em 2015, 21,3 milhões são refugiadas, ou seja, são adultos e crianças, de distintas crenças, raças, nacionalidades, opiniões políticas e grupos sociais que atravessaram a fronteira de seu país de origem e chegaram a uma outra nação, frequentemente um país fronteiriço, onde vieram a ter seus pedidos de refúgio reconhecidos. Outras 3,2 milhões de pessoas aguardam o reconhecimento dos pedidos de refúgio feitos, sendo classificadas como solicitantes de refúgio. Somam-se a esses dois grupos os 40,8 milhões de deslocados internos, aquelas pessoas que abandonaram seus lares e transitam dentro do mesmo território nacional. O principal país que mais gera deslocados internos há décadas é um vizinho do Brasil: a Colômbia, com 6,9 milhões de pessoas nessa condição. Há ainda uma população ainda mais difícil de ser contabilizada em estatísticas, a dos apátridas – pessoas que nem sequer detém registros de sua existência, não sendo consideradas como um nacional por nenhum Estado. O Acnur estima que 10 milhões de seres existem sem uma nacionalidade, sendo este um pré-requisito básico para o usufruto de todos os aspectos dos direitos humanos.
Na tentativa de auxiliar os Estados a considerarem as necessidades específicas de proteção de cifras migratórias sem precedentes, o Acnur lançou em 2006 um Plano de Ação de 10 pontos sobre a Proteção dos Refugiados e a Migração Mista. Cada ponto propõe ferramentas e estratégias práticas que poderiam ser adotadas para efetivamente responder aos desafios de movimentos mistos. A agência recomenda que Estados tomem medidas para estabelecer sistemas de entrada capazes de identificar novos recém-chegados com necessidades de proteção internacional e que proporcionem soluções adequadas às suas necessidades específicas, além de identificar soluções necessárias para outros grupos envolvidos em fluxos migratórios mistos. Sendo assim, o Plano de Ação estabelece áreas centrais onde são necessárias intervenções de proteção, tais quais:
- Cooperação entre a rede estratégica de organizações que trabalham com a temática da migração em nível local, regional e internacional;
- Mapeamento de características-chaves de grupos migratórios;
- Estabelecimento de sistemas de entrada que sejam sensíveis a questões específicas de proteção;
- Garantia de condições de recepção apropriadas que respeitem os direitos básicos das pessoas envolvidas em fluxos migratórios;
- Desenvolvimento de mecanismos eficientes de identificação e encaminhamento para distintas categorias migratórias;
- Garantia de procedimentos e processos diferenciados para a determinação do status de refugiado;
- Promoção de soluções duradouras para pessoas reconhecidas como refugiadas;
- Resposta para os movimentos de refugiados e solicitantes de refúgio que tenham deixado os países onde já haviam encontrado proteção adequada (secundários);
- Promoção de acordos para o retorno de pessoas que não são refugiadas e sobre opções migratórias alternativas.
Em nível global, os movimentos migratórios mistos são preocupantes especialmente no Mediterrâneo, no Golfo de Aden, na América Central e no Caribe, no Sudeste Asiático e nos Bálcãs. Como exemplo da efetivação do Plano dos 10 Pontos em nível regional, destacam-se a Declaração e o Plano de Ação do Brasil, firmados em 2014, por ocasião do aniversário de 30 anos da Declaração de Cartagena sobre os Refugiados (1984). No final da reunião ministerial, organizada pelo governo brasileiro, 28 países e três territórios da América Latina e do Caribe aprovaram um marco de proteção regional para refugiados, apátridas e pessoas deslocadas na região, cujos movimentos migratórios mistos têm sido cada vez mais complexos.
Nos últimos anos, é notório o aumento do número de solicitantes de refúgio e refugiados na região, incluindo solicitantes provenientes de outros continentes, muitas vezes sujeitos às redes de tráfico de pessoas e tráfico ilícito de migrantes. Entre os grupos particularmente vulneráveis em contextos migratórios mistos, destacaram-se: os solicitantes de asilo e refugiados, as vítimas de tráfico de pessoas e tráfico ilícito de migrantes, imigrantes detidos, as mulheres vítimas de violência, as pessoas vítimas de violência e traumas psicológicos durante o processo migratório ou com alguma deficiência, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI), idosos, indígenas, afrodescendentes ou outras pessoas em situação de vulnerabilidade, como mulheres grávidas, jovens e crianças acompanhadas ou desacompanhadas. Na América do Sul, iniciativas como o Acordo de Residência para Nacionais do Mercosul demonstram a criação de um “espaço de solidariedade” comum para todos os cidadãos dos países que compõem a região, tanto em nível normativo como político.
No Brasil, o Acnur destaca a importância do debate sobre a proteção devida a fluxos migratórios mistos sob o marco do Projeto de Lei nº 2.516/2015, que visa a substituição do vigente Estatuto do Estrangeiro por uma nova Lei de Migração, orientada por princípios voltados para os direitos humanos de todas as pessoas, inclusive não nacionais, sejam eles refugiados ou os que não se qualificam sob a definição clássica de refugiado. O Acnur defende que a nova lei migratória brasileira estabeleça mecanismos de proteção complementar para os estrangeiros que não se enquadrem na categoria de refúgio ou apatridia, apresentando uma resposta ampla às situações de deslocamento forçado por fenômenos naturais extremos e decorrentes do aquecimento global, e também a situações de residência sob critérios humanitários, por exemplo: apátridas, refugiados cujo status já tenha cessado e pessoas cuja devolução ao país de origem implicaria risco de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante.
Como exemplo de boa prática em nível local, a cidade de São Paulo aprovou sua própria lei para refugiados e migrantes. A Política Municipal para a População Imigrante de São Paulo garante os direitos e o acesso de todos aos serviços públicos, sua proteção contra atos de xenofobia e racismo e a isonomia de tratamento em relação aos brasileiros habitantes da cidade. A importante discussão sobre a migração e refúgio também é feita por diversas secretarias que compõem comitês em seus estados. No Rio de Janeiro e no Paraná, representantes da sociedade civil e da academia têm integrado o debate para a discussão de soluções locais para os desafios e demandas geradas pelo crescente fluxo migratório voluntário ou forçado.
Na criação de boas práticas para a acolhida, proteção e integração de refugiados em fluxos migratórios mistos, o Acnur reconhece a necessidade de um compromisso em longo prazo para a consolidação da paz e a criação de oportunidades de subsistência, como parte de uma abordagem global e colaborativa. Diante de um contexto em que diversos Estados adotam medidas restritivas para conter os desafios apresentados pelo aumento do fluxo migratório, todos os esforços são necessários para assegurar que os Estados cumpram seus compromissos de proteção de pessoas que foram forçadas a deixarem seus países de origem por motivos de perseguição ou conflito. Por fim, o Acnur sugere o trabalho conjunto em busca de soluções de corresponsabilidades para confirmar a vigência de procedimentos justos e efetivos para a identificação de todas as pessoas envolvidas em movimentos mistos, com a devida atenção para as especificidades de proteção da pessoa em situação de refúgio.
Artigo submetido em dezembro de 2016.