Ajuda humanitária como parte da política externa brasileira

CAMILA ASANO

A política externa é um instrumento que o Brasil tem tradicionalmente utilizado para se projetar como um país relevante no mundo. Muitos aspectos dessa política, porém, ainda carecem de definição sob o governo de Michel Temer. Entre eles, a política de ajuda humanitária brasileira.

Falta ainda ao Itamaraty, esclarecer quais são as diretrizes e prioridades do país nesta frente de sua política externa. É sabido que mudanças em relação ao governo anterior de Dilma Rousseff acontecerão. A primeira delas, de cunho institucional, foi a extinção da CGFome (Coordenadoria Geral de Ação Humanitária e Combate à Fome), órgão que vinha centralizando as ações do Brasil no campo da assistência humanitária[1].

Nos anos de política externa dos governos do Partido dos Trabalhadores, vimos o Brasil ganhar espaço como provedor de ajuda humanitária, e havia um questionamento ao modelo de assistência ofertada pelos países do Norte Global (como Estados Unidos e os países da Europa). O Brasil dizia promover cooperação, e não ajuda humanitária, o que daria poder ao país “parceiro”, que deixaria de ser visto apenas como um receptor de assistência. Era também proposta uma forma alternativa àquela com que doadores tradicionais costumam atrelar a oferta de ajuda humanitária a condicionantes impostas ao país que a receberá. E toda ajuda, segundo o governo na época, somente era destinada se houvesse a demanda do país receptor – embora haja sempre o risco de controle do governo do país onde há um conflito sobre quem recebe ou não ajuda humanitária.

Uma outra bandeira da política externa anterior no campo humanitário se materializava na discussão sobre ajuda humanitária estruturante versus assistência emergencial, em que se defendia uma certa primazia da primeira. Essa visão vinha sendo questionada por importantes vozes da sociedade civil no campo humanitário e de fato merecia ajustes, dada a importância da ajuda emergencial diante de crises agudas e urgentes, como a última epidemia de Ebola no oeste da África. Apesar do discurso potente, a atuação do Brasil nem sempre exibia a mesma potência em quesitos como as contribuições financeiras para o enfrentamento de crises humanitárias, posto que os aportes feitos ficavam aquém dos fornecidos por países com economias consideravelmente menores. Por fim, a transparência das informações sobre as ações e aportes financeiros era precária, o que dificultava seu acompanhamento por organizações da sociedade civil e prejudicava o controle social dessa política. A dupla Temer e Serra precisa esclarecer o que muda das diretrizes que vinham sendo adotadas pelo governo anterior no tocante à ajuda humanitária.

Considerando as capacidades da política externa brasileira, conquistadas ao longo da história do Itamaraty, e os desafios impostos hoje na agenda humanitária, os seguintes aspectos devem estar presentes na forma como nosso país atua nesse campo:

O acesso irrestrito e seguro da assistência humanitária às vítimas deveria ser uma bandeira constante da diplomacia brasileira

  • Uso da capacidade negociadora da diplomacia brasileira para garantir acesso seguro da ajuda humanitária a locais onde há vítimas que necessitem desse amparo: a sangrenta guerra na Síria é um exemplo no qual agências e entidades humanitárias têm sido impedidas de levar ajuda às pessoas em diferentes partes do país. O acesso irrestrito e seguro da assistência humanitária às vítimas deveria ser uma bandeira constante da diplomacia brasileira.

 

  • Acolhida de refugiados e reforma da legislação migratória: o aumento do número de solicitações de refúgio no Brasil cresceu nos últimos anos. O país tem um discurso de acolhida a refugiados e isso lhe tem conferido certo prestígio internacional, sobretudo com relação a refugiados sírios. Parte disso é consequência da adoção de uma resolução do Ministério da Justiça que, em setembro de 2013, criou o chamado “visto humanitário” para os sírios, que permite que vítimas da guerra possam chegar ao Brasil e aqui solicitar refúgio, como mais de 2 mil sírios já o fizeram. Cabe lembrar que o total de quase 9 mil refugiados no Brasil de distintas nacionalidades – e não o inflado número de 95 mil apresentado equivocadamente por Temer na ONU em setembro de 2016 – ainda representa um número baixo se comparado com as dimensões territorial e populacional do país. O governo brasileiro deve seguir abrindo suas portas de forma solidária a vítimas de crises humanitárias de diferentes partes do mundo. Um dos obstáculos para tal é o Estatuto do Estrangeiro, uma anacrônica legislação migratória, resquício da ditatura, que vê no migrante uma ameaça à segurança nacional e não um sujeito de direito. É necessário que uma nova lei de migração, em votação no Congresso no momento em que este artigo foi escrito, seja adotada no Brasil. A própria política de vistos humanitários deve ser institucionalizada na nova lei de migração, com a perspectiva de direitos humanos.
  • Contribuições financeiras para fins humanitários compatíveis com o fato de ser uma das maiores economias do mundo: já houve episódios em que a atuação brasileira foi tímida em relação ao lugar que o país ocupa no mundo. Em janeiro de 2014, durante a 2ª Conferência Internacional de Alto Nível para Contribuições Humanitárias à Síria[2], o governo brasileiro anunciou que faria naquele ano um aporte no valor de 300 mil dólares. Na mesma reunião, o México anunciou uma contribuição dez vezes maior, no valor de 3 milhões de dólares[3]. Por outro lado, a contribuição brasileira ao combate à última epidemia do Ebola, de 25 milhões de reais[4], foi positiva, ainda que tardia.
  • Exportação de armas que não alimente violações aos direitos humanos e ao direito humanitário: o Brasil é o quarto maior exportador de armas leves no mundo, segundo a Small Arms Survey. Um passo urgente é a ratificação, por parte do Brasil, do Tratado de Comércio de Armas (TCA). A adoção pela ONU do TCA foi um marco histórico em 2013, ao criar a primeira regulação global sobre compra, venda e transferência de armas convencionais entre os países. Uma das grandes conquistas do tratado é que ele proíbe que Estados transfiram armamentos e munições para governos que possam usá-los para cometer crimes de atrocidade, como é o caso do genocídio e crimes contra a humanidade. O TCA prevê, ainda, que o país exportador avalie o risco de que a transferência de armas alimente graves violações de direitos humanos e, caso exista o temor, não avance com o envio do carregamento. O governo brasileiro assinou o TCA em junho de 2013, mas sua ratificação encontra-se em lenta tramitação no Congresso. Grandes exportadores de armas já ratificaram o tratado, como Reino Unido e França.

Equipes de MSF trabalham na ala pediátrica do hospital regional de Bafatá (Foto: Ramón Pereiro/MSF)

Apesar de tudo indicar que foco atual da agenda internacional do Brasil seja comercial, o governo de Michel Temer não poderá se furtar a ter uma atuação humanitária por meio de sua política externa. Em primeiro lugar, conferir prevalência aos direitos humanos não é somente um compromisso moral que os governantes devem ter no desenho dessa política, mas uma obrigação constitucional (Artigo 4º, II). Será difícil também que o governo ignore aspectos tradicionais da diplomacia brasileira, como a busca da paz e a defesa do multilateralismo. Por outro lado, se o Brasil quiser continuar sendo relevante no mundo, terá que fazer parte mais ativamente dos esforços globais frente a crises humanitárias que, infelizmente, têm se proliferado e agravado. O momento de retração da economia brasileira é um fator relevante, mas não pode ser usado como escusa se considerarmos que, mesmo com a crise, ainda somos uma das maiores economias do mundo.

Camila Asano é coordenadora de política externa da Conectas Direitos Humanos. Artigo submetido em outubro de 2016.

[1] http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/09/itamaraty-extingue-departamento-de-cooperacao-internacional-para-combate-a-fome-160.html

[2] Realizada no Kuait no dia 15 de janeiro de 2014nformação disponível em http://www.unocha.org/syria-humanitarian-pledging-conference [último acesso em 3 de setembro de 2015]

[3] Foram considerados os compromissos anunciados pelos países durante a Conferência no Kuait para fins de comparação, já que é extremamente difícil comparar desembolsos efetuados pelos países dada a dificuldade para obtenção desses valores, o que incluir desafios no cruzamento de dados fornecidos pela ONU e as cifras divulgadas pelos Estados. O caso brasileiro é particularmente mais desafiador, já que o governo a não possui uma base de dados pública atualizada contendo os valores destinados à ajuda humanitária.

[4] Essa contribuição se soma a outras doações que governo brasileiro havia feito para o combate à epidemia do Ebola, como apresentado na Nota do Itamaraty  disponível em www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6153:nota-a-imprensa-conjunta-dos-ministerios-das-relacoes-exteriores-e-da-saude-contribuicao-brasileira-ao-combate-internacional-ao-virus-do-ebola&catid=42&Itemid=280&lang=pt-BR