Impactos humanitários do (des)controle de armas

Gustavo Oliveira Vieira

Uma pesquisa sobre violência armada entre os anos 2007 e 2012[1] constatou que, naquele período, 508 mil mortes foram relacionadas com armas, das quais 438 mil (86%) em países que estão em “paz”. Os fluxos de armas não cessam em regiões do mundo onde estão ocorrendo crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra, e a ausência de controle internacional sobre as transferências de armas, bem como a falta de transparência sobre esses fluxos, é um dos grandes desafios quando se pretende minimizar o impacto humanitário da violência armada.

O problema do descontrole de armas não envolve apenas a liberdade de comércio, mas também o acesso às armas por parte das crianças, promovendo inúmeros acidentes; as balas perdidas, que encontram suas vítimas aleatoriamente;[2] e a gravidade do descontrole sobre as armas que estão sob a custódia do Estado e que com frequência são desviadas ou furtadas. Além, claro, dos problemas que envolvem as pessoas que legalmente têm acesso a armas, como representantes ou não de forças policiais e/ou militares, quando extrapolam os limites legais de seu uso.

Nesse cenário de descontrole, a presença de armas em ambientes de violência direta (intrafamiliar, como na violência doméstica, urbana ou mesmo em situações que transcendem fronteiras, no cenário internacional) interfere profundamente na irreversibilidade dos impactos da violência. As lesões permanentes e as mortes simplesmente não podem ser reconstruídas, e somam-se a isso o impacto psicológico de longo prazo nos grupos vinculados às vítimas e o custo econômico, que acaba sendo compartilhado com toda a sociedade, ultrapassando as cifras dos trilhões de dólares.[3]

Desarmamento humanitário

Os problemas também são ampliados com determinados tipos de armas. As minas terrestres antipessoais permanecem ativas por dezenas de anos após o cessar-fogo dos conflitos e não distinguem o passo de um combatente do passinho de uma criança (somente em 2014, acidentes com minas foram registrados em 54 países e em outras quatro áreas[4]). O mesmo ocorre com as submunições cluster[5] falhadas, que têm enorme potencial explosivo. Há também o efeito radioativo das armas nucleares usadas em combate ou em testes (o número de testes realizados já ultrapassa 2 mil), que afetam gerações de seres humanos (como o efeito Hibakusha[6]), além da fauna e da flora, por longo tempo.

Por tais razões, uma série de campanhas internacionais foi criada no seio da sociedade civil internacional para a conscientização sobre os impactos humanitários gerados pelo descontrole de armas e para demandar à comunidade internacional de Estados que erradique certas armas por gerarem danos inaceitáveis contra civis, ou o controle sobre o comércio generalizado por meio de uma norma internacional vinculante, ou seja, um tratado internacional. Ao conseguirem atingir os objetivos, algumas instituições desenvolveram mecanismos de monitoramento do respectivo tratado, conforme se observa na tabela a seguir.

Tipo Campanha (sociedade civil) Demanda Tratado internacional Relatório de monitoramento
Mina terrestre ICBL, Nobel da Paz 1997[7] Erradicação Tratado sobre Erradicação de Minas, 1997 Landmine Monitor
Munição cluster CMC[8] Erradicação Convenção sobre Munições Cluster, 2008 Cluster Munitions Monitor
Comércio de armas Control Arms[9] Controle Tratado sobre Comércio de Armas, 2013 ATT Monitor
Armas nucleares ICANW[10] Erradicação Sugestão de novo tratado em discussão pela ONU (2016)

Por causa das demandas humanitárias geradas pela política internacional relativa às armas, as iniciativas, as propostas e os debates que versam sobre esse aspecto foram aglutinados no marco do “desarmamento humanitário”, inclusive durante a Assembleia Geral das Nações Unidas — diferenciando-se, assim, do “desarmamento estratégico”, cuja finalidade não está voltada prioritariamente para amenizar o impacto humano e salvar vidas, mas para garantir equilíbrio de poder.

Controle sobre transferências de armas

Ainda que se reconheça a complexidade multifatorial da violência e dos conflitos armados, bem como a ambiguidade do papel desempenhado pela presença e pelo acesso às armas — entre instrumentos de defesa e/ou de potencialização da violência e do descontrole da violência —, importa problematizar o quanto a ausência de mecanismos de controle, tanto nacionais quanto internacionais, perpetua e, por sua omissão, potencializa as crises humanitárias.

Basta lembrar as recentes e graves crises humanitárias ocorridas ou em curso no Sudão do Sul,[11] que tem acesso a armas por várias fontes;[12] no Iêmen, onde armas continuam a chegar para traficantes[13] e que ainda sofre com o uso de armas que geram danos inaceitáveis contra civis,[14] incluindo na capital e em áreas residenciais;[15] ou na Síria, onde o maior conflito da atualidade (2016) já ceifou centenas de milhares de vítimas (206 mil mortes, 840 mil pessoas feridas, 85 mil pessoas desaparecidas e 4 milhões de refugiados até janeiro de 2005[16]) e onde as partes em combate continuam tendo acesso a armas para perpetrar ataques a civis.

Ali, de 12 anos, foi atingido por estilhaços nos braços e pernas durante um bombardeio ao vilarejo de Al-Bajah, Iêmen (Foto: Mohammed Sanabani/MSF)

O Tratado sobre Comércio de Armas foi criado para tentar conter, como obrigação jurídica internacional, o fluxo de armas convencionais e munições para regiões onde sabidamente ocorrem crimes contra a humanidade, crimes de genocídio e crimes de guerra, além de proibir as transferências de armas para regiões e países que estejam sob embargo do Conselho de Segurança da ONU — ou ainda quando as armas sejam usadas para perpetrar graves violações de direitos humanos. O tratado entrou em vigor em 2014 e tem como desafio agora, além da universalização (para suas obrigações alcançarem todos os Estados[17]), que os Estados-partes estejam dispostos a ser ampla e irrestritamente transparentes com seus informes anuais.[18]

Parece evidente que o descontrole, sobretudo internacional, sobre o fluxo de armas e munições atende à demanda de grupos de interesse que têm peso econômico significativo e peso político correspondente. Entretanto, os problemas humanitários e as causas de 508 mil mortes anuais podem ser em parte enfrentados por mecanismos mais criteriosos e transparentes do fluxo de armas.

Brasil no desarmamento humanitário

O Brasil tem participado de alguns processos de desarmamento humanitário, mas tem posição controversa em outros aspectos. O país é parte do Tratado sobre Erradicação de Minas, parou de produzir, exportar e armazenar esse tipo de armas, bem como colabora com a desminagem humanitária nas Américas Central e do Sul. Por outro lado, ainda produz, exporta e armazena munições cluster (que foram usadas pela Arábia Saudita no Iêmen). Ademais, assinou, mas até setembro de 2016 não havia ratificado, o Tratado sobre Comércio de Armas. São grandes desafios que, dependendo da posição tomada, podem ampliar o impacto humanitário, associando a imagem do país a mais um que visa a lucrar com crises humanitárias, em vez de atuar nas relações internacionais, conforme diz a Constituição, pela prevalência dos direitos humanos.[19]

Deslocados internos iraquianos esperam atendimento em clínica de MSF no campo de Debaga, perto de Erbil (Foto: Monique Jacques)


Gustavo Oliveira Vieira é professor adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), em Foz do Iguaçu, Paraná. É bacharel, mestre e doutor em direito. Coordena a extensão “Desarmamento humanitário: abordagem política”. Ativista da Ação pelo Desarmamento Humanitário (Dhesarme ). Coordenador do Núcleo de Estudos para Paz (Grupo de Pesquisas CNPq) e da Cátedra de Estudos para Paz (Imea). Artigo submetido em setembro de 2016.

[1] Global burden of armed violence. 2015. Disponível em: <http://www.genevadeclaration.org/measurability/global-burden-of-armed-violence/global-burden-of-armed-violence-2015.html>.

[2] O United Nations Office for Disarment Affairs (UNLIREC) registrou 741 mortes por balas perdidas na América Latina entre 2014 e 2015 (UNLIREC. Stray bullets II: media analysis of cases of stray bullets in Latin America and the Caribbean (2014-2015). Maio 2016. Disponível em: <http://www.unlirec.org/Documents/BalasPerdidas_Sum_ENG.pdf>.

[3]This research reveals that nearly USD 2 trillion in global violence-related economic losses could have been saved, had the global homicide rate in 200010 been reduced to levels below 3 deaths per 100,000 population—significantly lower than the average rate of 7.4 per 100,000 exhibited in 2007–12. Such savings would have been equivalent to 2.64 per cent of the global GDP in 2010” (Global burden of armed violence. 2015. Disponível em: <http://www.genevadeclaration.org/measurability/global-burden-of-armed-violence/global-burden-of-armed-violence-2015.html>).

[4] The Landmine Monitor. Major findings. 2015. Disponível em: <http://the-monitor.org/en-gb/reports/2015/landmine-monitor-2015/major-findings.aspx>.

[5] Submunição cluster é um artefato explosivo lançado por uma bomba cluster (bomba de fragmentação, bomba cacho), espécie de bomba contêiner que dispersa dezenas ou centenas de submunições. Ver: Vieira, G. O.; Sito, S. A. O tratado banindo as bombas cluster e a posição brasileira. Santa Maria: Unifra, 2010. p. 29-60. Disponível em: <http://www.dhesarme.org/download/bombas-clusters/>.

[6] CICV. Long-term health consequences of nuclear weapons 70 years on Red Cross hospitals still treat thousands of atomic bomb survivors. Disponível em: <http://www.icanw.org/wp-content/uploads/2015/08/Hiroshima-and_Nagasaki-ICRC-Info-Note-final.pdf>.

[7] International Campaign to Ban Landmines (ICBL). Disponível em: <www.iIcbl.org>.

[8] Cluster Munitions Coalition (CMC). Disponível em: <www.stopclustermunitions.org>.

[9] Control Arms. Disponível em: <www.controlarms.org>.

[10] International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICANW). Disponível em: <www.icanw.org>.

[11] Prio Blogs. Monitoring South Sudan. Disponível em: <http://blogs.prio.org/MonitoringSouthSudan/>.

[12] Arms transfers to South Sudan. Case Study 1 by ATT Monitor. Disponível em: <http://armstreatymonitor.org/en/wp-content/uploads/2015/08/ATT_ENGLISH_South-Sudan-Case-Study.pdf>.

[13] Como 8.000 armas do Brasil foram enviadas a um dos conflitos mais sangrentos da atualidade. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/09/06/Como-8.000-armas-do-Brasil-foram-enviadas-a-um-dos-conflitos-mais-sangrentos-da-atualidade>.

[14] Coalition on cluster munitions. Disponível em: <http://www.stopclustermunitions.org/en-gb/cluster-bombs/use-of-cluster-bombs/in-yemen.aspx>.

[15] Human Rights Watch. Yemen: coalition drops cluster bombs in capital. Indiscriminate weapon used in residential areas. 7 jan. 2016. Disponível em: <https://www.hrw.org/news/2016/01/07/yemen-coalition-drops-cluster-bombs-capital-0>.

[16] Sipri. Sipri Yearbook 2015. Summary. The armed conflict in Syria and Iraq. Estocolmo: Sipri, 2016. p. 2.

[17] No Brasil, foi criada a “Coalizão pela Exportação Responsável de Armas”, composta por Anistia Internacional, Conectas Direitos Humanos, Dhesarme, Instituto Sou da Paz e Instituto Igarapé, para pressionar pela ratificação do Brasil ao Tratado sobre Comércio de Armas (2016). Disponível em: <www.paraondevaoasarmas.org.br>.

[18] MacDonald, Anna. Greater Transparency in Arms Trade would save contless lives. 26 ago. 2016. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/aug/24/greater-transparency-arms-trade-save-lives?CMP=share_btn_tw>.

[19] Vieira, G. O.; Blanco, R. Brasil: o exportador de passado. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3248>.