A integração de refugiados como política pública humanitária

Adriana Capuano de Oliveira, Gilberto M. A. Rodrigues e Jose Blanes Sala

No âmbito global da política e do direito dos refugiados, as soluções duradouras se consolidam como um imperativo para a ONU, os Estados e as comunidades de acolhimento. A impossibilidade de repatriação voluntária, diante da persistência dos conflitos armados e do esfacelamento sociopolítico dos países de origem, torna a integração dos refugiados nos países de destino um desafio que transcende as balizas políticas, jurídicas e morais da contemporaneidade.

As normas internacionais, os instrumentos e as políticas de proteção aos migrantes forçados, amparados em quase um século de experiência internacional multilateral, embora consolidados na moldura do direito internacional dos refugiados, enfrentam um cenário crítico de crise humanitária, cujas proporções superaram, em 2015, o período da Segunda Guerra Mundial, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

Diante das catástrofes humanitárias, geradas por conflitos armados que se agudizam em diferentes territórios, em especial no Oriente Médio e na África, o que se esperaria dos demais governos e das sociedades em relação aos refugiados? Não apenas pelos compromissos e obrigações internacionais assumidos, mas pelo valor moral e ético da solidariedade, a expectativa é de que as fronteiras estivessem abertas, e o acolhimento fosse uma diretriz política prioritária.

Todavia, com o aumento da xenofobia em países europeus e nos Estados Unidos, a partir de um contexto de securitização das migrações, governos vêm promovendo a exaltação de discursos e justificativas antiterroristas, fechando as fronteiras, levantando muros e adotando a seletividade étnico-racial, cultural e religiosa como parte das políticas migratórias desses países.

O princípio da não regressividade no campo dos direitos humanos está colocado em xeque por líderes e partidos de ultradireita que ascendem ao poder, assim como pelas ações desesperadas de governos que tratam de neles se manter, visando a atender a opiniões públicas internas crescentemente conservadoras e influenciadas pelo discurso antimigratório.

É nesse cenário de crescente incerteza e desamparo, que deixa milhões de pessoas vulneráveis, que a integração dos refugiados ganha uma dimensão de urgência global. Essa urgência conecta a dimensão humanitária às políticas públicas nacionais, sobretudo em países de segundo acolhimento — ou seja, que recebem e reconhecem os refugiados como tais após sua estada em um país de primeiro acolhimento —, que podem receber refugiados e integrá-los de forma completa.

A política regional para refugiados

Da perspectiva regional, a América Latina e, em particular, a América do Sul estão em condições de assumir um papel de maior relevo na recepção e integração de refugiados. A política regional para refugiados tem evoluído de maneira notável desde 1984, quando foi aprovada a Declaração de Cartagena, documento marco do compromisso político dos países da região em relação à proteção dos refugiados.

O princípio da não regressividade no campo dos direitos humanos está colocado em xeque por líderes e partidos de ultradireita que ascendem ao poder

De Cartagena em diante, com as atualizações decenais das Declarações de San José (1994), México (2004) e Brasil (2014), a política regional para refugiados foi gradativamente incorporando a importância de estabelecer e adotar políticas públicas voltadas para as soluções duradouras, e fortalecer a integração plena de refugiados.

Essa política regional dos refugiados influenciou a aprovação de leis nacionais em diversos países da América Latina, nos anos 1990-2000, em que a definição de refugiado da Convenção de Genebra de 1951 foi ampliada para incluir as “graves e sistemáticas violações de direitos humanos” como fundamento para a concessão de refúgio.

Essas legislações nacionais também se caracterizam por reconhecer direitos e incluir mecanismos de inclusão e de integração de refugiados como forma de materializar as soluções duradouras. São, sobretudo, direitos civis, sociais, econômicos e culturais que se refletem não apenas na vida dos refugiados, mas nas de suas famílias, filhos e filhas, muitos deles nascidos e educados nos países de acolhimento.

O desafio da integração para além das leis

Não obstante a adoção de ótimas leis nacionais para refugiados, elogiadas pelo próprio Acnur, os países sul-americanos enfrentam grandes dificuldades para implementar as normas e políticas previstas nos diplomas legais. Essas dificuldades ocorrem tanto nas políticas de proteção quanto nas políticas de integração. Nestas últimas, porém, as dificuldades são mais complexas, pois sua implementação necessita da atuação de diversos atores nacionais, regionais e locais, com a consequente demanda orçamentária.

Pessoas fazem fila para ser vacinadas contra a febre amarela em Kinshasa; MSF apoiou a campanha (Foto: Dieter Telemans)

A sociedade civil organizada é reconhecidamente um ator fundamental nas políticas de integração, e sua importância se faz ainda mais relevante nos países em desenvolvimento, nos quais os poderes públicos não dispõem de suficientes recursos e de capacidades para adotar e implementar as necessárias políticas públicas para refugiados.

No Brasil, nos últimos 13 anos (governos Lula, 2003-2010, e governos Dilma, 2011-2016), o governo federal, em colaboração com alguns governos estaduais e municipais, e em parceria com atores da sociedade civil, vem tentando implementar políticas públicas para refugiados voltadas para áreas essenciais, como educação, saúde e trabalho. Apesar de o número de refugiados reconhecidos no Brasil ser relativamente pequeno — menos de 10 mil —, há nesse universo de pessoas uma demanda crescente para oferta e qualificação de políticas públicas específicas.

A questão que se apresenta, tanto conceitual quanto prática, é que os refugiados necessitam de políticas públicas humanitárias. Essa afirmação se ampara na discriminação positiva que as normas e os instrumentos internacionais estabelecem em relação aos refugiados, considerando o tratamento diferenciado que a própria Lei dos Refugiados (Lei no 9.474/1997) confere a seus sujeitos/beneficiários.

As políticas públicas para refugiados, entendidas como políticas públicas humanitárias, demandam diferentes abordagens por parte dos poderes públicos, da sociedade civil e do setor privado. Essa diferença de abordagem não se confunde nem com assistencialismo nem com tutela dos interesses dos refugiados. Estes devem ser vistos, reconhecidos e tratados como sujeitos de direitos e de seu exercício, assegurados por sua condição.

Julienne, deslocada interna em Bulengo, República Democrática do Congo, de onde vem parte importante de refugiados no Brasil (Foto: Phil Moore)

Nesse aspecto, o papel das universidades vem ganhando importância e envergadura, no apoio tanto às políticas de proteção quanto às políticas de integração. Por meio de convênios e ações do Acnur, assim como de projetos governamentais, as universidades brasileiras têm contribuído com a difusão sobre a temática do refúgio e do direito dos refugiados, além de apoiar ações voltadas à integração de refugiados, em diversas frentes, como na oferta de cursos de português, no processo diferenciado para o reconhecimento de títulos acadêmicos, na adoção de políticas de ingresso de refugiados na graduação e na pós-graduação, entre outras.

A Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM)

Em tal âmbito, a experiência da Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM) merece ser conhecida e reconhecida. Criada pelo Acnur e implementada no Brasil desde 2004 por meio de convênio com universidades, a CSVM é instrumento com potencial multidimensional, que pode produzir ações qualificadas na docência, na pesquisa e na extensão, e abre um canal importante para viabilizar alguns aspectos cruciais da integração dos refugiados.

Além disso, tomando por base a CSVM da Universidade Federal do ABC (UFABC), a universidade pode contribuir com ações de extensão voltadas à sensibilização e ao apoio técnico às políticas públicas humanitárias dos municípios de seu entorno, sobretudo aqueles que recebem número mais expressivo de refugiados. Isso tem se dado, na prática, com os municípios de Santo André e São Bernardo do Campo, a partir de conversas e reuniões bilaterais, eventos, aulas, workshops e da troca de experiências visando a gerar mais responsabilidade e capacidade de oferta de serviços públicos.

Na medida em que o poder público — em todas as esferas federativas —, apoiado e auxiliado pela sociedade civil organizada, assuma a necessidade de adotar e implementar políticas públicas humanitárias, a integração dos refugiados será cada vez mais uma brecha de esperança no horizonte crítico da crise humanitária contemporânea.

Adriana Capuano de Oliveira, Gilberto M. A. Rodrigues e José Blanes Sala são professores do Bacharelado em Relações Internacionais (BRI), do Programa de Pós-graduação em Ciências Humanas e Sociais (PG-CHS) e integrantes da Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM) da Universidade Federal do ABC (UFABC), em convênio com o Acnur. Artigo submetido em setembro de 2016.