Migração, tráfico de pessoas e o trabalho da OIM, a agência de migração das Nações Unidas

Rosilyne Borland

O mundo se torna cada vez mais um espaço de mobilidade humana — 1 bilhão de pessoas são migrantes, a maioria em movimento dentro dos próprios países. Isso significa que uma em cada sete pessoas no mundo é migrante — 250 milhões são migrantes internacionais e 750 milhões, migrantes internos.[1] Se os migrantes internacionais formassem um país, ele teria uma população maior do que a do Brasil. Muitos de nós, em algum momento, migramos para outra cidade, outra região ou outro país por uma razão ou outra, talvez para estudar, trabalhar ou se juntar a nossas famílias.

Globalmente, a migração é impulsionada por uma série de fatores complexos, incluindo a demografia, o mercado de trabalho e a demanda dos consumidores por produtos mais baratos, desigualdades, novas tecnologias, degradação ambiental e conflitos, para citar apenas alguns. Mas a migração também é motivada por essa vontade muito humana de viver a melhor vida possível para você e para as pessoas que ama. Com oportunidades altamente díspares, e a maioria dos países sendo hoje um misto de lugar de trânsito, destino e origem para migrações, a mobilidade no atual contexto global não é apenas inevitável, mas também necessária. É por isso que a Organização Internacional para as Migrações (OIM) vê a migração que é bem administrada e que protege os direitos dos migrantes como um fenômeno que pode contribuir para o bem-estar de migrantes individualmente, de suas famílias e de suas comunidades.

Há, claro, criminosos que tentam explorar outras pessoas, e entre os milhões de migrantes muitos são alvos de abuso, violência e exploração. Migrantes não são inerentemente vulneráveis, mas as condições do processo de migração, combinadas com a situação individual da pessoa, podem fazer com que determinado indivíduo enfrente maior risco de ter seus direitos humanos violados. Basta lembrar as imagens de migrantes no teto de trens, em barcos e caminhões superlotados ou tentando desesperadamente entrar em outros países irregularmente para entender como algumas migrações criam situações de vulnerabilidade.

Sabemos que em meio aos fluxos de migração interna e internacional existem pessoas em situações de vulnerabilidade e em risco: crianças e adolescentes que viajam sozinhos, pessoas que sobreviveram à violência antes ou durante sua migração, pessoas que enfrentam discriminação e xenofobia baseadas em seu status de migrante, nacionalidade, religião ou gênero. Uma das piores formas de violência e exploração experimentadas por migrantes é o tráfico de pessoas, e, apesar de pessoas traficadas não serem exclusivamente migrantes, sabemos que traficantes de pessoas frequentemente se aproveitam dos indivíduos durante o processo migratório com o objetivo de explorar em proveito próprio sua expectativa de uma vida melhor.

A maioria das vítimas identificadas é de pessoas sexualmente exploradas, mas a exploração do trabalho é uma preocupação crescente

Ninguém sabe quantos indivíduos são vítimas do tráfico de pessoas, uma vez que só podemos contar aqueles que conseguimos identificar e somos capazes de assistir, mas as estimativas globais estão na casa dos milhões,[2] e todas as regiões são afetadas. No mundo inteiro, homens, mulheres e crianças são traficados para muitos tipos diferentes de exploração, como a exploração sexual e o trabalho forçado, além da prática forçada de atos criminosos e a mendicância forçada. Apesar de a maioria das vítimas identificadas globalmente ser ainda de pessoas sexualmente exploradas, a exploração do trabalho é uma preocupação crescente, e grande parte dos especialistas concorda que é tão prevalente quanto o tráfico para a exploração sexual. Das milhões de pessoas traficadas a cada ano no mundo, apenas aproximadamente 45 mil vítimas são formalmente identificadas. A OIM assiste um em cada sete desses casos, junto com nossos parceiros em governos e na sociedade civil, ajudando as vítimas a retomar suas vidas normais, muitas vezes depois de anos de abuso e crueldade ultrajantes. Desde 2010, a maioria das vítimas de tráfico assistidas diretamente pela OIM por meio de nosso Fundo de Assistência Global[3] — que já ajudou mais de 85 mil pessoas — foi traficada para ter seu trabalho explorado.

O tráfico de pessoas é uma indústria lucrativa[4] e acontece em qualquer lugar onde redes criminosas encontram um modo de explorar outras pessoas para seus próprios lucros. É frequentemente encontrado em setores não regulados ou informais, mas também pode acontecer com o uso de fraude, logro e corrupção: não é incomum que a OIM forneça assistência a pessoas que assinaram contratos acreditando que eram válidos. Migrantes que são traficados também podem migrar com documentos e vistos válidos, podem ser altamente instruídos e podem ter economizado muito dinheiro que é roubado deles por recrutadores inescrupulosos e outros envolvidos na rede de tráfico. Há uma preocupação crescente com aqueles que são forçados a deixar suas casas por causa de desastres naturais ou conflitos e caem em situações de tráfico. Um estudo recente[5] da OIM constatou que o tráfico de pessoas acontece em zonas de conflito e no contexto de desastres naturais e produzidos pelo ser humano, quando a ausência de normalidade permite que traficantes explorem vulnerabilidades existentes ou provocadas pela crise. A OIM também está realizando atualmente pesquisas com os fluxos mistos de migrantes verificados na crise do Mediterrâneo e que incluem indicadores sugestivos de tráfico ou exploração potenciais. Os resultados mostram que uma proporção significativa desses migrantes passou por experiências diretas de abuso ou exploração.[6]

Uma das coisas que aprendemos no trabalho com nossos parceiros para proteger e assistir as vítimas é que a experiência de ser traficado leva a sérias consequências na saúde dos sobreviventes. O tráfico é por definição caracterizado por violência e abuso. Ainda que as pessoas traficadas não sejam necessariamente trancadas em um quarto, elas são frequentemente coagidas e controladas com violência e ameaça do uso da violência contra si e suas famílias, além de dívidas esmagadoras e outras formas de abuso psicológico.[7] Pessoas traficadas também enfrentam habitualmente condições terríveis, não apenas no contexto da exploração forçada, mas também em suas condições de vida. Muitas pessoas traficadas são forçadas a viver e a trabalhar no mesmo lugar, em geral com acesso limitado a banheiros e chuveiro, nenhum controle de temperaturas extremas, pouco para comer e comida de má qualidade. Um estudo recente da OIM e da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, com base em entrevistas com migrantes e vítimas de tráfico na mineração, na construção e na indústria têxtil, confirmou isso, e também constatou que eles estavam expostos a produtos químicos e máquinas perigosas, tinham pouco ou nenhum treinamento para o trabalho que estavam fazendo e foram submetidos a altos níveis de estresse.[8]

Rosa, de 54 anos, fugiu de El Salvador com os dois netos, de 14 e 16 anos, temendo que fossem recrutados à força por gangues (Foto: Christina Simmons/MSF)

No ano 2000, a comunidade internacional concordou com uma definição de “tráfico de pessoas” detalhada no Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas que é complementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional,[9] um instrumento que foi ratificado amplamente e que está refletido na maior parte das legislações contra o tráfico em todo o mundo. O Protocolo de Palermo, como é conhecido, também define os elementos de uma resposta bem-sucedida contra o tráfico, a clássica abordagem dos “3 Ps”, focada na prevenção, na proteção e na ação penal [em inglês, prevention, protecion e prosecution]. Dada a complexidade do tráfico de pessoas, a maioria dos países estabeleceu comissões intersetoriais para tratar desse problema, frequentemente com a participação de vários ministérios, assim como parceiros como a OIM e a sociedade civil. Muitos países lutam para prevenir e reagir ao tráfico de pessoas por meio de planos nacionais detalhados sobre a questão, e em alguns também existem casos de comissões e planos locais.

Dezesseis anos depois do Protocolo de Palermo, as Nações Unidas e nossos países-membros aprovaram os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e o tráfico está incluído especificamente no objetivo 8.7: […] tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas e assegurar a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas”.

Sabemos que em meio aos fluxos de migração interna e internacional existem pessoas em situação de vulnerabilidade e em risco: crianças e adolescentes que viajam sozinhos, pessoas que sobreviveram à violência antes ou durante sua migração, pessoas que enfrentam discriminação e xenofobia baseadas em seu status de migrante, nacionalidade, religião ou gênero

Equipe de MSF se aproxima de bote de borracha com 142 migrantes e refugiados que tentam chegar à Europa pelo Mediterrâneo (Foto: Borja Ruiz Rodriguez/MSF)

No ano 2016, a pedido de nossos Estados-membros, a OIM culminou nossa relação de 65 anos tornando-se formalmente uma organização das Nações Unidas. Como “a agência da ONU sobre migração”, a OIM vai continuar trabalhando com governos e a sociedade civil para responder aos desafios relacionados com a migração, incluindo o tráfico de pessoas. E, ao mesmo tempo que continuamos apoiando os esforços dos Estados para gerir a migração de modo que beneficie a todos, também vamos continuar a representar a voz dos migrantes, particularmente aqueles que sobreviveram a abusos e violações dos direitos humanos, como o tráfico de pessoas.

[1] Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (Undesa). International Migration Report 2015.

[2] Organização Internacional do Trabalho (ILO, na sigla em inglês). Forced labour, human trafficking and slavery: facts and figures. Disponível em: <www.ilo.org/global/topics/forced-labour/lang–en/index.htm>. Acesso em: 23 set. 2016.

[3] Por favor, contate a autora em <rborland@iom.int> para mais detalhes.

[4] As Nações Unidas estimam o valor total do mercado do tráfico ilícito de pessoas em 32 bilhões de dólares (ILO, 2005).

[5] OIM (IOM, na sigla em inglês). Addressing human trafficking and exploitation in times of crisis. 2015. Disponível em: <http://publications.iom.int/books/addressing-human-trafficking-and-exploitation-times-crisis-evidence-and-recommendations-0>.

[6] IOM. Analysis: flow monitoring surveys, the human trafficking and other exploitative practices prevalence indication survey. In: Mixed migration flows in the Mediterranean and beyond. Disponível em: <http://migration.iom.int/docs/Analysis%20-%20Flow%20Monitoring%20and%20Human%20Trafficking%20Surveys%20in%20the%20Mediterranean%20and%20Beyond%20-%207%20September%202016.pdf>.

[7] Zimmerman, C.; Borland, R. (Ed.). Caring for trafficked persons: guidance for health providers. Genebra: Organização Internacional para a Migração, 2009.

[8] Buller, A. M.; Vaca, V.; Stoklosa, H.; Borland, R.; Zimmerman, C. Labour exploitation, trafficking and migrant health: multi-country findings on the health risks and consequences of migrant and trafficked workers. International Organization for Migration/London School of Hygiene and Tropical Medicine. 2015.

[9] Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em: <http://www.unodc.org/documents/middleeastandnorthafrica/organised-crime/UNITED_NATIONS_CONVENTION_AGAINST_TRANSNATIONAL_ORGANIZED_CRIME_AND_THE_PROTOCOLS_THERETO.pdf>.

Rosilyne Borland é a especialista regional em Direitos dos Migrantes e Grupos Vulneráveis do Escritório Regional para a América do Sul da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Tem mais de 12 anos de experiência em temas de migração e no combate ao tráfico em particular. E-mail para contato: rborland@iom.int. Artigo submetido em setembro de 2016.