O direito internacional humanitário é aplicável às novas tecnologias de guerra?
Gabriel Pablo Valladares
Nos últimos anos, têm crescido exponencialmente as reinvindicações políticas, étnicas, nacionais ou religiosas e a luta pelo acesso a recursos-chave como vetor das dinâmicas que originam ou dão continuidade aos conflitos armados. As tensões não resolvidas em diferentes partes do planeta continuam se acumulando, os recursos essenciais para as sociedades são cada vez mais escassos, e o tecido social e os meios de resiliência das populações afetadas se desgastam perigosamente.
Por um lado, os meios de comunicação expõem a devastação das aldeias e cidades; milhares de pessoas mortas, feridas, deslocadas ou cruzando fronteiras, devastadas pela dor, desespero e miséria, muitas vezes a partir do uso, por exércitos regulares ou por grupos armados, de novas tecnologias de guerra. A sofisticação da maquinaria militar e a distância física dos soldados no campo de batalha não são novidade. No entanto, recentes avanços no campo da robótica e da informática, combinados com as demandas operacionais militares, apresentam a possibilidade de reduzir ou eliminar completamente o controle humano direto em sistemas de armas e no uso da força, o que pode ser altamente arriscado para pessoas e bens protegidos pelo direito internacional humanitário (DIH).
Essas novas realidades sem dúvida geram uma sensação de insegurança que nos questionam sobre o devido respeito às regras e normas do DIH e a pertinência de sua aplicação às novas tecnologias de guerra.
O DIH, conjunto de normas internacionais que, por razões humanitárias, trata de limitar os efeitos dos conflitos armados, de um lado serve para proteger as pessoas que não participam ou que deixaram de participar dos combates e, de outro, limita os meios e métodos para a condução das hostilidades.
Não é fácil compreender o valor e a pertinência das normas do DIH se ao menos não se tentar superar a apatia generalizada que existe sobre seu respeito e aplicação – uma apatia em parte gerada pelo desgaste emocional e o desalento que acarreta ver a morte e a destruição cometidas indistintamente pelas partes envolvidas no teatro de operações ou, às vezes, pela utilização de tecnologias militares não tripuladas que são comandadas à distância.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), uma organização independente, imparcial e neutra que se esforça por prestar proteção e assistência humanitária às vítimas dos conflitos armados e de outras situações de violência, também é promotor e guardião do DIH, cumprindo um importante papel na promoção e no desenvolvimento de suas normas tanto para a proteção de vítimas quanto para a limitação de certos métodos e meios de combate. Ser o guardião não é ser o garantidor do DIH — essa função cabe aos Estados.
A natureza dos conflitos armados contemporâneos continuamente apresenta desafios para a aplicação e o respeito ao DIH em muitas áreas. É preciso compreender esses desafios e solucioná-los para que o DIH continue cumprindo sua função de proteção em situações de conflito armado. Um dos desafios atuais é a aplicabilidade de suas normas à vasta gama de novas tecnologias que têm entrado, ou que entrarão em mais algum tempo, nos teatros de operações bélicas, entre elas os drones armados, os sistemas de armas autônomas e a chamada “guerra cibernética”.
As novas tecnologias de guerra
Muitos dos novos desenvolvimentos tecnológicos são funcionais para novos métodos e meios de guerra. Por exemplo, os drones armados, os sistemas de armas autônomas e a denominada “guerra cibernética”. Todos eles apresentam novos desafios humanitários, éticos e jurídicos. Embora as novas tecnologias de guerra não sejam regulamentadas especificamente nos tratados de DIH, seu desenvolvimento e uso não caem em um vazio jurídico.
Como acontece com todos os sistemas de armas, eles devem ser capazes de ser usados sem infringir o DIH, em particular as normas sobre a condução das hostilidades. Essa responsabilidade cabe a cada Estado que desenvolve essas novas tecnologias de guerra em conformidade com as normas específicas do DIH — que dispõem que, quando um Estado estuda, desenvolve, adquire ou adota uma nova arma, ou novos meios e métodos de guerra, tem a obrigação de determinar se seu uso está proibido pelo direito internacional. Essas normas são para assegurar que as forças armadas de um Estado sejam capazes de conduzir as hostilidades em conformidade com suas obrigações internacionais e que novas armas não sejam utilizadas prematuramente em condições nas quais não se possa garantir o respeito ao DIH. No entanto, apesar desse requisito jurídico e da grande quantidade de Estados que desenvolvem ou adquirem novos sistemas de armas a cada ano, sabe-se que apenas alguns têm aplicado procedimentos para realizar exames jurídicos de novas armas.
Os drones armados
O DIH não proíbe expressamente os drones nem considera que sua índole seja inerentemente discriminatória ou pérfida. Eles não são diferentes das armas disparadas de aeronaves tripuladas, como helicópteros ou outras aeronaves de combate. Contudo, é importante notar que, embora não sejam ilícitos em si, seu uso está sujeito ao direito internacional. Por outro lado, deve-se mencionar que nem todos eles portam armas e são usados para o combate. Na verdade, muitos dos drones utilizados pelos militares não carregam armas e são usados com fins de vigilância ou de inteligência militar.
Há quem defenda que os drones melhoram a precisão dos ataques, o que reduziria o número de vítimas e causaria menos danos materiais. Esse é um assunto para debate, porque faltam informações confiáveis sobre os efeitos da maioria dos ataques efetuados com drones e porque, pelo menos em algumas ocasiões, os ataques com drones já mataram ou feriram indevida ou ilicitamente pessoas civis.
Reduzir ou eliminar o controle humano direto em sistemas de armas pode ser altamente arriscado para pessoas e bens protegidos pelo DIH
Os tratados de armas e demais instrumentos jurídicos do DIH não se referem expressamente aos drones. No entanto, está claro que o uso em conflitos armados de qualquer sistema de armamento está sujeito às normas de DIH. Isso significa, entre outras coisas, que, ao usar drones armados, as partes em um conflito devem sempre distinguir entre combatentes e civis e entre objetivos militares e bens de caráter civil, bem como tomar todas as precauções viáveis para proteger os civis e seus bens, e devem suspender ou cancelar um ataque quando seja suscetível de causar incidentalmente danos a pessoas civis ou a bens de caráter civil que sejam excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta prevista. Do mesmo modo, os drones não devem de modo algum ser utilizados para transportar armas proibidas, como agentes químicos ou biológicos.
Em conformidade com o DIH, nos conflitos armados é permitido usar força letal contra combatentes e civis que participam diretamente das hostilidades.
Embora os operadores de sistemas de armas controladas à distância, como os drones, possam estar longe dos campos de batalha, são eles que operam o sistema, identificam o alvo e disparam os mísseis. Em geral, essas pessoas operam sob o comando de um responsável; portanto, em conformidade com o DIH, os operadores de drones e sua cadeia de comando são responsáveis por suas ações e consequências. O fato de que estejam a centenas de quilômetros do campo de batalha não os isenta de suas responsabilidades, entre elas a obrigação de aplicar os princípios de distinção e proporcionalidade e a de tomar todas as precauções necessárias no ataque. Assim, os operadores de drones não são diferentes dos pilotos de aeronaves tripuladas — como helicópteros ou outras aeronaves de combate — no que diz respeito à sua obrigação de respeitar o DIH e, da mesma forma, também podem ser objeto de ataques lícitos conforme as normas de DIH.
A guerra cibernética
O CICV entende a “guerra cibernética” como as operações lançadas contra um computador ou um sistema de computadores por meio de uma corrente de dados quando usados como meios e métodos de guerra em um contexto de conflito armado, segundo definido no DIH. Pode-se recorrer à guerra cibernética como parte de um conflito armado que, em outros aspectos, é poupado de operações cinéticas.
Felizmente, até agora a guerra cibernética não tem conduzido a consequências humanitárias dramáticas. Embora ainda não se conheça completamente o potencial militar do ciberespaço, aparentemente os ciberataques contra os sistemas de transporte, as redes elétricas, os diques e as usinas químicas ou nucleares são tecnicamente possíveis. Tais ataques podem ter consequências graves, com elevado número de mortos ou feridos civis e danos consideráveis aos bens de caráter civil. Talvez haja mais probabilidade de que as operações cibernéticas sejam usadas para manipular a infraestrutura ou os serviços civis, acarretando problemas de funcionamento ou perturbações que não necessariamente causem mortes ou lesões imediatas.
Apesar de ser relativamente nova e se desenvolver rapidamente, a tecnologia cibernética, como já dito, não atua em um vazio jurídico.
O CICV acolheu com agrado o fato de que os relatórios de 2013 e 2015 do Grupo de Especialistas Governamentais das Nações Unidas sobre os Avanços no Campo da Informação e das telecomunicações no contexto da segurança internacional tenham confirmado que “o direito internacional e, em particular, a carta das Nações Unidas é aplicável…” a essa temática, e que tenham destacado que se aplicam “os princípios jurídicos internacionais estabelecidos, com inclusão, quando proceder, dos princípios de humanidade, necessidade, proporcionalidade e distinção”. Um número crescente de Estados e organizações internacionais afirmou publicamente que o DIH se aplica à guerra cibernética.
Em 2011, o CICV declarou que o uso das capacidades cibernéticas em conflitos armados deve observar todos os princípios e normas do DIH, como acontece com qualquer outra arma, meio ou método de guerra, novos ou antigos. Não faz qualquer diferença o fato de que o ciberespaço seja considerado um novo domínio para a guerra, semelhante a ar, terra, mar e espaço exterior; que seja considerado um novo domínio diferente, por ser de origem humana, enquanto os outros são naturais; ou que não seja considerado um domínio como tal.
Durante os últimos quatro anos, o CICV tem mantido um diálogo bilateral e confidencial com vários Estados, especialistas e think tanks sobre o possível custo humano da guerra cibernética e os desafios destacados.
Sistemas de armas autônomas
Durante os últimos anos, tanto o desenvolvimento quanto a utilização de sistemas robóticos pelas forças armadas têm experimentado um aumento notável, especialmente no que diz respeito a diferentes sistemas não tripulados que operam no ar, na terra e na água. Essa mudança de paradigma não é um acontecimento inesperado, mas o resultado do aumento gradual, ao longo do tempo, da autonomia dos sistemas de armas, especialmente em suas “funções críticas”, ou seja, a seleção e o ataque de objetivos.
Os operadores de drones não são diferentes dos pilotos de aeronaves tripuladas no que diz respeito à obrigação de respeitar o DIH
Nos últimos anos, multiplicaram-se as discussões sobre sistemas de armas autônomas, ocorridos em vários fóruns. Entre esses debates, figuram reuniões de especialistas no âmbito da Convenção sobre Proibições ou Restrições ao Uso de Certas Armas Convencionais que Podem Ser Consideradas como Excessivamente Nocivas ou Ter Efeitos Indiscriminados, realizadas em 2014 e 2015, e as reuniões de especialistas convocadas pelo CICV em 2014. As opiniões sobre esse tema complexo, incluindo as do CICV, continuam a evoluir para uma melhor compreensão das capacidades tecnológicas atuais e potenciais, o propósito militar da autonomia em armas e as questões resultantes relacionadas com o respeito ao DIH e à aceitabilidade ética.
Um dos principais problemas é que não há uma definição internacionalmente aceita de sistemas de armas autônomas, mas um elemento comum em várias definições propostas é a ideia de um sistema de armas que pode selecionar e atacar objetivos de forma independente.
O CICV propôs que “sistemas de armas autônomas” é um termo amplo que cobriria qualquer tipo de sistemas de armas que operam no ar, na terra ou no mar, com autonomia em suas “funções críticas”, ou seja, uma arma que pode selecionar e atacar objetivos sem intervenção humana. Após a ativação inicial, é o próprio sistema de armas — usando seus sensores, programas e armas — que se encarrega dos processos de seleção de alvos e de ações que são normalmente controladas diretamente por seres humanos.
Quer dizer que é a autonomia das funções críticas o que distingue os sistemas de armas autônomas de todos os outros sistemas de armas, inclusive dos drones armados, em que, como mencionado anteriormente, as funções críticas são controladas à distância por um operador humano.
Alguns sistemas de armas usados hoje são autônomos em suas funções críticas, entre eles os sistemas de defesa aérea e antimísseis, os sistemas de armas de “proteção ativa” para veículos terrestres e os sistemas de armas sentinela, entre outros.
Dado o atual ritmo dos avanços tecnológicos, é urgente examinar as implicações jurídicas, humanitárias e éticas dessas armas. Com base no estado atual e previsível da tecnologia robótica, assegurar que os sistemas de armas autônomas possam ser utilizados de acordo com o DIH será um desafio tecnológico muito difícil de resolver à medida que se atribuam a essas armas tarefas mais complexas e que elas sejam aplicadas em ambientes mais dinâmicos.
Um dos principais desafios é se o sistema de armas seria capaz de diferenciar autonomamente os objetivos militares dos bens de caráter civil, os combatentes dos civis e os combatentes ativos das pessoas fora de combate. Outro desafio é se poderia ser programada uma arma para detectar e avaliar os numerosos fatores e variáveis contextuais necessários para determinar se pode ser esperado que o ataque cause danos civis incidentais e a bens de caráter civil, ou uma combinação desses danos, que seriam excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta esperada, em conformidade com os requisitos da norma da proporcionalidade. Além disso, a capacidade de programar uma arma para cancelar ou suspender um ataque — se é evidente que o objetivo não é militar ou que é sujeito a proteção especial, ou que o ataque violaria a norma da proporcionalidade, conforme exigem as normas sobre precaução nos ataques — levanta uma questão muito problemática. Assim, quanto aos sistemas de armas autônomas previstos em contextos nos quais provavelmente se encontrem pessoas ou bens protegidos, existem graves dúvidas sobre a possibilidade técnica de programá-los para realizar avaliações complexas, dependentes do contexto, como exigem as normas de DIH sobre distinção, proporcionalidade e precaução no ataque. Essas são avaliações inerentemente qualitativas, nas quais continuarão a ser necessários os razoamentos e julgamentos que apenas os seres humanos podem realizar.
Por sua condição de máquina, não se poderia responsabilizar um sistema de armas autônomas por uma violação ao DIH. Além da responsabilidade daqueles que empregam as armas, apresenta-se a questão sobre quem seria juridicamente responsável se as operações de um sistema de armas autônomas provocasse um crime de guerra.
Se não pode ser determinada a responsabilidade em conformidade com o DIH, é lícito ou ético empregar tais sistemas? O CICV insta os Estados a considerar as questões jurídicas e éticas fundamentais relacionadas com a utilização de sistemas de armas autônomas antes que sejam mais desenvolvidos ou utilizados em um conflito armado. Em especial, o CICV tem comunicado sua preocupação com o potencial custo humano dos sistemas dessas armas e se podem ser utilizados em conformidade com o DIH.
Conclusão
O DIH é questionado de forma permanente pela evolução dos conflitos armados contemporâneos. Para obter maior proteção dos civis em conflitos armados, é necessário respeitá-lo, aplicá-lo e implementá-lo. Para o CICV, é prioridade permanente garantir que o DIH enfrente adequadamente a realidade dos cenários bélicos e que preste proteção às vítimas dos conflitos armados.
Suas normas, que desde muito tempo regem a condução das hostilidades, em especial as normas de distinção, da proporcionalidade e da precaução no ataque, aplicam-se a todos os novos armamentos e desenvolvimentos tecnológicos na guerra, incluindo os drones, a guerra cibernética e os sistemas de armas autônomas. Isso não é um impedimento para que novas normas de DIH sejam criadas para atender às especificidades técnicas desses sistemas e métodos de guerra.
Além disso, esses sistemas de armas também levantam sérias questões éticas, em especial os sistemas de armas autônomas, uma vez que seu uso generalizado representaria uma mudança de paradigma na condução das hostilidades. A pergunta fundamental para todos nós é se os princípios da humanidade e os ditames da consciência pública podem permitir que as máquinas tomem decisões de vida ou morte.
Para finalizar, é importante lembrar que a Opinião Consultiva sobre a Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares da Corte Internacional de Justiça lembrou que os princípios e as normas estabelecidos no DIH se aplicavam “a todas as formas de guerra e a todos os tipos de armas”, inclusive “as do futuro”.
Este artigo, submetido em outubro de 2016, é de exclusiva responsabilidade do autor e não necessariamente representa em todo o texto a posição oficial do CICV. O autor agradece a colaboração da senhora Monica Paulina Espinoza Raggi e de Diogo Alcantara pela revisão do português.
Gabriel Pablo Valladares é advogado pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (Argentina), desde 1998 é assessor jurídico da Delegação Regional do CICV para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Até 1997, foi professor adjunto interino de direito internacional público e de direito internacional humanitário da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade de Direito da Universidade de Flores (Argentina). Entre 2005 e 2007, foi professor convidado de pós-graduação lato sensu em direito dos conflitos armados da Universidade de Brasília. Entre 2004 e 2009, foi professor titular de direito internacional humanitário do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Nacional de La Plata (Argentina). Tem sido correspondente do Asser Instituut da Holanda para seu Yearbook of Internacional Humanitarian Law. É autor de obras e artigos de direito internacional e tem participado de centenas de eventos acadêmicos como expositor na América, África e Europa.