Refúgio e migração no Brasil: fronteira como oportunidade de proteção

Aryadne Bittencourt e Fabrício Souza

O agravamento da crise dos refugiados traz desafios para o Brasil. Pessoas de mais de 80 nacionalidades buscaram refúgio no país nos últimos anos. São mais de 8 mil refugiados reconhecidos pelo governo brasileiro e cerca de 30 mil solicitações em fase de julgamento. Isso significa que ao menos duplicou a quantidade da população refugiada em quatro anos.[1] Além do cenário de refúgio stricto sensu, há aproximadamente 80 mil haitianos no Brasil, regulados por visto humanitário ou em processo de residência permanente.[2]

Esse panorama contemporâneo é marcado pelo adensamento de algumas crises humanitárias e pelas estratégias de fuga desenvolvidas por esses sujeitos. Os sírios compõem atualmente a principal nacionalidade de refugiados reconhecidos, e há um fluxo significativo de pessoas que fugiram da República Democrática do Congo e mesmo de locais fronteiriços, como a Colômbia — que concentra a segunda maior população de deslocados internos do mundo.[3] Esses três grandes grupos por si só já colocam desafios à acolhida e à integração em razão das peculiaridades que apresentam.

Além desses perfis, novos fenômenos migratórios, como a recente chegada de centenas de venezuelanos, impõem a necessidade de proteção, dada a inegável crise humanitária pela qual passa o país. A dinâmica das migrações também se expressa em termos de feminização dos perfis dos solicitantes de refúgio. Em 2016, pela primeira vez a chegada de solicitantes ao Rio de Janeiro foi paritária entre homens e mulheres. Em meio a todos esses movimentos, a proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade humanitária deve ser assegurada.

Estrutura de proteção

Ao contrário do cenário de campo de refugiados em que operam as grandes ações humanitárias, o contexto brasileiro se insere na política internacional de proteção pela construção de um campo de ação que é nas próprias cidades. Os refugiados urbanos apresentam características e demandas diferenciadas daqueles alocados em campos. O fato de estarem nas cidades, juntos aos demais imigrantes e aos brasileiros, se relaciona com o regime de elegibilidade adotado pelo Estado para distinguir as narrativas das pessoas que são ou não identificadas na condição de refugiado.

Esse processo de elegibilidade, como é denominado, se constitui na solicitação de refúgio e em sua análise pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). A partir da efetivação do pedido junto à autoridade migratória — poder estatal exercido pelo Departamento de Polícia Federal —, é realizada uma análise do caso para classificar se há adequação ao conceito de refugiado adotado pelo governo brasileiro por meio da Lei no 9.474/1997.

As análises de elegibilidade, grosso modo, examinam de forma binária se uma pessoa é classificada como refugiado ou como migrante econômico, de modo que a motivação econômica seja considerada negativamente no pedido de refúgio. Não apenas as decisões sobre os casos individuais de refúgio, mas toda a política relacionada com a população refugiada é gerida pelo Conare. Este é um órgão colegiado e considerado tripartite por ter representação de instâncias do governo, da sociedade civil e de uma instituição internacional: o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

Diferentemente do que ocorre em muitos países da Europa, aos solicitantes de refúgio é garantido o acesso aos serviços públicos, inclusive de formalização para o trabalho. Para os casos bem-sucedidos no processo, é emitida a documentação que lhes garante legalmente direitos gerais concedidos a imigrantes regularizados no país, que são basicamente todos aqueles oferecidos aos brasileiros, com exceção dos direitos políticos. Um vácuo de proteção, porém, é instituído para aquelas pessoas que tiveram seus pedidos negados. Muito embora o Brasil não mantenha uma prática regular de deportação, há um desafio de inserção social dessas pessoas não abarcadas pelo instituto do refúgio.

O caso dos haitianos é emblemático nesse sentido. Desde o terremoto, em 2010, e a decorrente vulnerabilidade humanitária da população, milhares de haitianos começaram a chegar ao Brasil buscando alguma maneira de proteção. Hoje, já são cerca de dez vezes o total de refugiados reconhecidos. Se, por um lado, os haitianos não são considerados refugiados pelo Conare, por outro não ficaram totalmente desamparados. A saída construída pelo governo brasileiro foi de viabilizar visto de permanência por razões humanitárias, popularmente conhecido como “visto humanitário”,[4] cuja regulação ocorre pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Políticas como essa são medidas importantes de proteção complementar para pessoas que, a despeito de estarem em situação de violência e de violação de direitos humanos, não são inseridas na definição de pessoas refugiadas.

Políticas para migrantes e refugiados

O casal sírio Hasim e Hulud, com os quatro filhos e o irmão de Hasim, na Grécia; sírios formam maior grupo de refugiados no Brasil (Foto: Rorandelli Rocco/Terraproject)

De acordo com as Nações Unidas, o Brasil é um dos países menos receptivos a refugiados no mundo, encontrando-se na 137ª posição entre quase 200 países avaliados. Esse dado considera a capacidade de acolhimento de acordo com a população, a extensão territorial do país e indicadores econômicos.[5] Ainda assim, algumas políticas públicas de abertura e acolhimento humanitário estão sendo desenvolvidas.

Paralelamente às ações de âmbito federal administradas pelo Conare, alguns estados e municípios têm produzido iniciativas em prol da população migrante e refugiada. Foram estabelecidos Comitês Estaduais Intersetoriais ao menos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. E a cidade de São Paulo tem se mostrado protagonista na criação de políticas públicas para esse público, como exemplifica a sanção do Projeto de Lei no 142/2016, anunciada no Fórum Social Mundial das Migrações, que foi promovido também com o apoio da Prefeitura.

Outro movimento relevante em construção se refere a uma estrutura legal para regulamentar as migrações no Brasil que seja pautada por uma perspectiva de direitos humanos e com maior sensibilidade humanitária. Instituições da sociedade civil, membros da academia e instâncias estatais, incluindo o próprio Ministério da Justiça,[6] militam pela aprovação do Projeto de Lei no 2.516, de 2015, que está em tramitação para votação no Senado Federal e visa a reformar a legislação migratória vigente no país. O atual Estatuto do Estrangeiro data de 1980,[7] momento em que vigorava um regime ditatorial avesso às migrações, imprimindo uma marca de segurança nacional no tratamento da população migrante. O projeto de lei prevê, entre outras mudanças significativas, a possibilidade de visto temporário por acolhida humanitária, independentemente de nacionalidade, para pessoa cujo país de origem esteja em situação “de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário”.[8]

Considerações para acolhimento humanitário

O Brasil é comumente caracterizado como um país acolhedor. Para fazer jus à sua política externa assumida oficialmente com uma postura aberta e humanitária a migrantes e refugiados, é preciso avançar em políticas públicas para acolhimento e ampliação e aprimoramento das estruturas de análise e julgamento dos processos. Sem desconsiderar outros temas basilares de relevância, destacamos os dez seguintes:

  1. De modo geral, os migrantes e refugiados enfrentam dificuldade em encontrar apoio para integração efetiva. Estão em fase de implementação alguns Centros de Referência e Acolhida para Imigrantes (Crais), sem, contudo, se mostrarem suficientes para atender às demandas emergenciais, regulares ou permanentes, restando, muitas vezes, às instituições da sociedade civil o encargo prático de lidar com os vácuos de proteção resultantes dessa precariedade estrutural.
  2. A falta de abrigos públicos direcionados à população migrante é um dos mais graves e permanentes problemas no Brasil, mesmo nas cidades com maior número de solicitantes e refugiados. As vagas existentes nos abrigos são escassas, e as acomodações, inadequadas.
  3. O acolhimento aos refugiados, solicitantes de refúgio e migrantes deve incluir a preocupação com a especificidade de algumas pessoas, sobretudo quando isso significa maior vulnerabilidade. Pessoas com deficiência, com fragilidades físicas ou psíquicas, principalmente quando causadas pela violência que determinaram seu deslocamento, devem receber atendimento prioritário e atenção especial.
  4. Apesar de uma sólida legislação protetiva, a realidade a que estão submetidas as crianças e os adolescentes não corresponde ao ideário normativo. É preciso assegurar acesso irrestrito ao procedimento de refúgio, direito imediato à documentação básica, agilidade na tramitação de processos administrativos e judiciais, inclusão em programas sociais específicos, preservando os vínculos comunitários e culturais, entre outras medidas.
  5. Ao crescimento dos fluxos de refugiados é preciso haver correspondente ampliação da estrutura de recepção e processamento das solicitações, como forma de resolver o longo tempo de demora nas decisões.
  6. A despeito do modelo tripartite, que pretende garantir maior justiça e democracia às decisões, falta ao sistema de elegibilidade brasileiro a normatização de regras do devido processo legal.
  7. O Conare tem desenvolvido critérios sobre o processo decisório nos pedidos de refúgio. Contudo, o modelo atual não garante a transparência das decisões, que é essencial para assegurar a ampla defesa dos casos e é indispensável nos sistemas democráticos.
  8. Como o Brasil não faz fronteira com a maioria dos países que passam por crise humanitária, a primeira dificuldade das pessoas está em justamente encontrar rotas seguras de fuga. A flexibilização de concessão de visto para pessoas atingidas pelo conflito na Síria[9] e o fato de os sírios serem a principal nacionalidade de refugiados reconhecidos indica como o visto é um instrumento importante de uma política de proteção. É importante nutrir sensibilidade para esse dispositivo e para grupos migratórios de outras nacionalidades.
  9. A solidariedade e a responsabilidade compartilhada para a proteção das pessoas são fundamentos do direito internacional dos refugiados. Junto à integração local e à repatriação voluntária, o reassentamento em um terceiro país constitui uma maneira de solução duradoura para pessoas refugiadas. Considerando que a Colômbia tem um dos cenários mais graves de deslocamento forçado interno no mundo e que seus nacionais constituem o maior grupo de refugiados na América Latina, é importante ampliar a política brasileira de reassentamento, de modo a expressar o compromisso com a crise colombiana.
  10. O acolhimento e a recepção aos refugiados, solicitantes de refúgio e migrantes devem ser pautados pelo respeito e pela garantia aos princípios de direitos humanos. Isso implica a implementação de processos mais justos, que superem a lógica securitizatória, e a criação de outro modelo de atendimento em substituição ao atual, dirigido e realizado por agentes policiais.

As fronteiras não deveriam ser obstáculos para os refugiados e migrantes, nem o registro da desigualdade global

A despeito da proeminência atual do assunto, as lutas pela proteção dos refugiados no Brasil se exercem há pelo menos 40 anos, quando foi criado o Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Isso ocorreu em um momento em que o Estado brasileiro não assumia uma política pública para esse grupo, visto que a Lei no 9.474, que regulamenta o estatuto dos refugiados, é de fins da década de 1990.

De modo geral, a experiência brasileira com migrações está atravessada pela atuação da sociedade civil, marcadamente por entidades relacionadas com a Igreja Católica, como as Cáritas, o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e as Pastorais do Migrante. Além dessas, as redes de apoio e solidariedade à população migrante têm se ampliado e se diversificado. É esse movimento que nos inspira a força de resistência de pessoas em fuga. As fronteiras não deveriam ser obstáculos para os refugiados e migrantes, nem o registro da desigualdade global. Em vez disso, as fronteiras podem indicar novos patamares de garantias e direitos.

Aryadne Bittencourt e Fabrício Souza são agentes de proteção legal do Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Artigo submetido em setembro de 2016.

[1] Disponível em: <http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/08/numero-de-refugiados-no-brasil-dobra-em-quatro-anos-e-chega-84-mil>.

[2] Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/09/governo-prorroga-visto-humanitario-para-haitianos>.

[3] UNHCR. Global trends: forced displacement in 2015.

[4] Esse instrumento normativo foi instituído pela Resolução no 97, de 2012, do CNIg, que dispõe sobre a concessão do visto permanente a nacionais do Haiti.

[5] Disponível em: <http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-e-um-dos-paises-menos-receptivos-a-refugiados–diz-onu,1882728>.

[6] Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/RELACOES-EXTERIORES/494729-MINISTERIO-DA-JUSTICA-E-ENTIDADES-SOCIAIS-PEDEM-ATUALIZACAO-DA-LEI-DE-MIGRACAO-DO-PAIS.html>.

[7] Trata-se da Lei no 6.815, de 1980.

[8] Art. 14, § 3º, do Projeto de Lei no 2.516/2015: “O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação, reconhecida pelo Governo brasileiro, de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento.”

[9] Trata-se da Resolução Normativa nº 17, de 2013, do Conare.