Em seu sentido mais básico, a ideia humanitária, de solidariedade para com outros seres humanos, independentemente de suas origens e crenças, é milenar. O que hoje conhecemos como ajuda humanitária se inspira nessa ideia. Já o campo do direito internacional humanitário (DIH) — que estabelece regras e limites para o comportamento das partes em conflito – começou a ser consolidado em convenções internacionais no final do século XIX e ganhou o escopo atual depois da Segunda Guerra Mundial. Como todo resultado da ação e do pensamento humano, os princípios ligados à ajuda humanitária e ao DIH têm sua interpretação debatida e estão em evolução constante. Este glossário pretende apresentar algumas definições e informações básicas, incluindo termos médicos frequentemente encontrados em textos sobre as atividades de Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Explicações mais detalhadas sobre o direito internacional humanitário e as sucessivas jurisprudências podem ser encontradas, em inglês, no Guia prático do direito humanitário, publicação on-line elaborada com base no livro de mesmo nome de Françoise Bouchet-Saulnier, conselheira jurídica de MSF. Artigos que aprofundam a discussão sobre os princípios e as práticas da ajuda humanitária, e sobre políticas de saúde, podem ser encontrados no site da Unidade de Análise e Advocacy de MSF.

 

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Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais

Entre os desafios enfrentados por MSF em seu trabalho de campo, dois dizem respeito à sua capacidade de oferecer tratamento: o alto custo dos medicamentos existentes e a falta de tratamento para muitas das doenças que afetam as populações assistidas. Como resposta, MSF usou o dinheiro que recebeu ao ganhar o prêmio Nobel da Paz em 1999 para criar a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, com o objetivo de melhorar o acesso às tecnologias existentes (remédios, métodos de diagnóstico e vacinas) e estimular a pesquisa e o desenvolvimento de insumos médicos necessários ao enfrentamento das doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica e prevalentes em muitos países onde MSF trabalha.

Cerco

É uma estratégia militar na qual uma área é cercada e isolada a fim de destruir a resistência armada ali localizada. Segundo o direito internacional humanitário, o ataque a uma área sob cerco deve poupar instalações médicas e o patrimônio cultural. A pilhagem depois da conquista é proibida. As partes do conflito devem acordar a remoção de enfermos, feridos e mulheres grávidas. Provocar a fome de civis sob cerco como tática de guerra é proibido. Se estiver sem suprimentos que garantam sua sobrevivência, a população tem direito a receber ajuda humanitária imparcial.

Civis

O direito internacional humanitário é baseado na distinção entre civis (e alvos civis) e combatentes (e alvos militares). Em conflitos armados internacionais, civil é uma pessoa que não é parte de qualquer força armada regular ou grupo armado organizado. No entanto, a conceituação se complica nos conflitos armados não internacionais. Nesses casos, os integrantes dos grupos que se opõem às forças armadas regulares não são formalmente reconhecidos como combatentes pelo direito internacional humanitário, uma vez que isso desafiaria o monopólio do uso da força que as leis nacionais e internacionais atribuem ao Estado. O direito internacional humanitário silencia sobre o status dessas pessoas e as tem tratado como civis participantes de hostilidades. Os protocolos adicionais das Convenções de Genebra preveem que mesmo pessoas que participam de hostilidade mantêm o status de civis e a proteção garantida por esse status nos momentos em que não estejam participando diretamente das hostilidades.

Combatentes

Combatentes são pessoas autorizadas a usar a força em situações de conflito pelo direito internacional humanitário. Em tempo de conflito, eles constituem alvos militares legítimos, mas não podem ser processados criminalmente por sua participação nas hostilidades, a não ser que sua conduta não esteja em conformidade com as leis da guerra. Em conflitos armados não internacionais, grupos armados não estatais, rebeldes ou dissidentes são considerados partes do conflito, o que os compele a cumprir as provisões do direito internacional humanitário para esse tipo de guerra. No entanto, seus integrantes não têm status de combatente.

Comissão Internacional Humanitária para a Apuração dos Fatos (CIHAF)

O organismo, cuja sigla em inglês é IHFFC, tem a função de investigar violações graves do direito internacional humanitário. Foi criada em 1977 por um dos protocolos adicionais às Convenções de Genebra para conduzir investigações de forma independente, mas acabou instalada apenas em 1991, quando um mínimo de 20 Estados reconheceu sua competência. Até 2015, apenas 67 Estados haviam reconhecido essa competência (China e EUA, por exemplo, não o fizeram). Qualquer Estado-parte pode pedir uma investigação de violações, mas, caso elas atinjam Estados não signatários, estes têm que autorizá-la. A CIHAF nunca conduziu uma investigação.

Conflito armado internacional

Segundo o direito internacional humanitário, é o conflito entre dois ou mais Estados, independentemente de ter havido ou não uma declaração formal de guerra; a expressão também se aplica quando há a ocupação militar de parte ou de todo um território por uma força estrangeira, com ou sem resistência. Em 1977, um dos protocolos adicionais das Convenções de Genebra classificou como conflito internacional armado as guerras de libertação, quando uma população luta contra o domínio colonial, a ocupação estrangeira e regimes racistas. Dada a complexidade dos conflitos atuais, a jurisprudência tem se referido à “internacionalização” de conflitos — por exemplo: os que afetam territórios de vários países, mesmo que não envolvam diretamente forças estatais; ou que ocorram dentro de um país, mas uma ou mais partes envolvidas tenham apoio de outros Estados.

Conflito armado não internacional

Definido pelo segundo protocolo adicional das Convenções de Genebra como aquele que ocorre dentro do território de um Estado, entre as forças do Estado e um ou mais grupos armados. Para que uma situação seja caracterizada como um conflito armado não internacional – e, portanto, cujas partes devem se submeter às leis da guerra –, são observados dois critérios principais: a organização dos grupos armados, que devem ter um “comando responsável”, controlar parte do território e ter a capacidade de “sustentar operações militares prolongadas”; e a intensidade do conflito, no tempo e no espaço. “Distúrbios” e “atos esporádicos e isolados de violência” são explicitamente excluídos desses critérios – cuja interpretação, porém, é com frequência razão de controvérsia. Uma das razões é que as forças do Estado relutam em reconhecer o status do adversário. Além disso, há os casos em que conflitos armados não internacionais se internacionalizam pela interferência de atores externos. No direito internacional humanitário, o termo “conflito armado não internacional” substitui expressões como conflito interno, guerra civil, rebelião, insurgência e insurreição, que não são definidas nas leis da guerra.

Construção da paz

Segundo uma declaração presidencial[1] do Conselho de Segurança da ONU de fevereiro de 2001, atividades de construção da paz têm o objetivo de impedir a eclosão, a recorrência ou a continuação de conflitos armados, e incluem programas e mecanismos para o desenvolvimento de instituições e o desenvolvimento econômico.

[1] Uma declaração presidencial é feita pelo presidente do Conselho de Segurança em nome do Conselho, adotada em um encontro formal do órgão e divulgada como um documento oficial.

Convenção de Genebra de 1864

Também conhecida como a Primeira Convenção de Genebra, visava melhorar as condições de atendimento aos feridos e prisioneiros de guerra e é a primeira das convenções internacionais com o objetivo de proteger as vítimas de conflitos. Sua aprovação foi fortemente impulsionada pelo ativismo humanitário do suíço Henry Dunant, fundador em 1863 do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

Convenção de Haia de 1899 e 1907

São uma série de tratados e declarações multilaterais adotados nas Conferências de Paz de Haia, Holanda, que versam sobre a conduta e os meios da guerra e sobre a resolução pacífica de disputas. O Brasil foi representado
por Rui Barbosa, depois apelidado de “Águia de Haia”, cuja contribuição foi considerada essencial para a defesa do princípio da igualdade entre Estados.

Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados

A Convenção foi adotada em 1951 e entrou em vigor em 1954. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) foi criado na mesma época com o mandato de proteger e ajudar refugiados. Junto com seu protocolo de 1967, que lhe deu abrangência universal (o documento original protegia apenas pessoas que tiveram que fugir devido a eventos na Europa antes de janeiro de 1951), a convenção é a base de toda a legislação internacional sobre os direitos dos refugiados.

Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos

As Convenções de Genebra de 1949 e seus protocolos adicionais, de 1977, constituem o cerne do direito internacional humanitário. As Convenções ampliaram e codificaram ao mesmo tempo as normas de conduta na guerra e de assistência e proteção aos civis estabelecidas em tratados anteriores. As Convenções de Genebra, ratificadas por 196 países, são quatro: as três primeiras estabelecem regras para o tratamento de combatentes feridos e doentes, tripulantes de navios naufragados e prisioneiros de conflitos armados internacionais; a quarta estabelece normas para os métodos de guerra e para a proteção da população civil, também em conflitos armados internacionais. O primeiro protocolo de 1977 reforça a quarta convenção de Genebra, com regras sobre a proteção de vítimas de conflitos armados internacionais; e o segundo estabelece regras para a proteção de vítimas de conflitos armados não internacionais. As Convenções de Genebra reconheceram o papel do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) como guardião do direito humanitário, com a missão de salvaguardar sua interpretação e propor a codificação de novas regras, e também como uma organização de ajuda humanitária e de proteção das vítimas de conflitos.

Corte Internacional de Justiça (CIJ)

Também conhecida como Corte de Haia, a CIJ (ou ICJ, na sigla em inglês) foi criada em 1945 pela Carta das Nações Unidas com o objetivo de dirimir disputas entre Estados e emitir pareceres sobre questões jurídicas apresentadas pela Assembleia Geral da ONU. As decisões do tribunal são vinculantes, e o Conselho de Segurança da ONU pode determinar seu cumprimento. No entanto, decisões da Corte já foram ignoradas pelas partes envolvidas em disputas submetidas ao tribunal.

Crime contra a humanidade

O Estatuto de Roma de 1998 4, que criou o Tribunal Penal Internacional, entende por “crime contra a
humanidade” os seguintes atos, quando cometidos “no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático,
contra qualquer população civil”: homicídio; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada de
uma população; prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; tortura; agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez
forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero; desaparecimento forçado de pessoas; crime de apartheid; outros atos
desumanos de caráter semelhante que causem intencionalmente grande sofrimento ou afetem gravemente a
integridade física ou a saúde física ou mental. O Estatuto traz definições mais detalhadas desses crimes.

Crime de guerra

O Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, define como crimes de guerra “infrações graves” das Convenções de Genebra, “violações sérias” das leis e dos costumes aplicáveis a conflitos armados internacionais e “violações graves” das normas das Convenções de Genebra e do direito humanitário internacional aplicáveis a conflitos armados não internacionais. O Estatuto lista essas violações e infrações graves. O documento destaca a importância da intencionalidade para a tipificação do crime de guerra. “Salvo
disposição em contrário, nenhuma pessoa poderá ser criminalmente responsável e punida por um crime da competência do Tribunal, a menos que atue com vontade de o cometer e conhecimento dos seus elementos materiais”, diz seu artigo 30. “Entende-se que atua intencionalmente quem: relativamente a uma conduta, se propuser adotá-la; relativamente a um efeito do crime, se propuser causá-lo ou estiver ciente de que ele
terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos”, continua o artigo. “Entende-se por ‘conhecimento’ a consciência de que existe uma circunstância ou de que um efeito irá ter lugar, em uma ordem normal dos acontecimentos”, conclui.